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ŽIŽEK E NASCIDO PARA MATAR: A IDEOLOGIA DA IRONIA

Atualizado: 10 de ago.

Vivemos em uma realidade de contradições. Conscientes dos problemas do sistema, convivemos com essa realidade injusta, condicionados por nossa impotência de mudarmos o mundo sozinhos. Nos forçamos a naturalizar essas injustiças que já não são mais tão passíveis de serem maquiadas à medida que crescem. Os privilégios do bem-estar estão cada vez mais exclusivos, enquanto olhamos uns aos outros como se não estivéssemos no próximo barco que vai despencar da cachoeira. Para lidarmos com uma situação que foge muito do nosso controle individual, o cinismo é uma opção. É a opção de Joker, narrador e protagonista do filme Nascido para Matar


Arte e texto por Victor Aguiar
Arte e texto por Victor Aguiar

Discordante da guerra do Vietnã, o soldado Joker ironiza seus superiores, os colegas e seus jargões belicistas. Ao transformar essa ironia em sua própria personalidade, porém, Joker acaba se tornando um recipiente da contradição. Sem agência real, senão uma moralidade superficial, seu espírito dissidente é reduzido a uma maneira de assimilação à máquina ideológica. É incapaz de parar a guerra sozinho e, ciente disso, aceita-a como única realidade possível, participando ativamente da destruição resultante.


Os colegas cujas ideias são expostas, desprovidos de inteligência e pensamento crítico (em sua maioria ilustrados como caricatos misóginos e racistas que se enxergam como caubóis matando indígenas), são indivíduos que não precisam lidar com a imoralidade de suas ações, convencidos de que estão fazendo um dever divino de justiça ao matarem camponeses desarmados e estuprarem suas filhas, esposas e irmãs. Joker, apesar de destacado por sua dissidência, ainda faz parte desse conjunto e suas mãos praticam da mesma violência.


O primeiro ato do filme, situado na Carolina do Norte, aborda o processo de desconscientização dos recrutados do Exército dos Estados Unidos nos campos de treinamento. O recruta Joker, que recebe do sargento (e de forma pejorativa) esse vulgo por conta de um comentário irônico em um momento inoportuno, observa como o treinamento é uma forma de assassinar o pensamento individual dos soldados em formação ali e resiste.


Em sua estadia no campo de treinamento, Joker revela mais de uma vez ser um contestador. Em um desses episódios, revela ao sargento ser agnóstico – um protestante que acredita que religião é uma virtude indispensável aos soldados em formação. Apesar da discordância, o superior respeita sua demonstração de coragem ao se manter convicto de sua descrença diante de uma pressão. O recruta sente sua individualidade sendo validada em um ambiente cujo propósito é sufocá-la, mal sabendo que essa validação é superficial e diz mais sobre o valor dado à coragem como uma qualidade masculina do que exatamente um encorajamento à liberdade de pensamento e expressão.


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O recruta Pyle é um dos “retardados de McNamara” (McNamara Morons), nome carinhoso dado ao contingente de recrutas neurodivergentes da época, em referência ao 8º Secretário de Defesa dos EUA, Robert McNamara, que, diante de uma crise de recrutamento do exército em plena guerra do Vietnã, descobriu que havia uma reserva enorme de jovens que seriam barrados de ir para a guerra por causa do teste de aptidão. Ao baixar absurdamente os critérios desse teste, o Exército passou a aceitar essa massa de jovens negligenciados que não conseguiriam desviar do alistamento por serem de baixa renda. Pyle evidencia a contradição moral, a precarização da infraestrutura e a desigualdade social que alimentam a guerra.


A dificuldade que Pyle tem de se adaptar ao regime do campo de treinamento é o bode expiatório perfeito para o sargento justificar doses extras de crueldade e suas trapalhadas acabam sendo pretexto para punições coletivas aos recrutas. Quando o grupo decide que basta, decretam que irão castigar Pyle fisicamente na calada da noite. Joker é um dos participantes no linchamento noturno do recruta, apesar de expressar pesar ao colega antes de golpeá-lo na barriga com uma barra de sabonete e, após retornar à cama, cobrir os ouvidos para não ter que ouvir seu choro.


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Ainda que não tenha a mesma consciência crítica que Joker tem sobre os fatores que os levaram a serem buchas de canhão dos interesses do império, Pyle é um ser humano com intuição e sensibilidade. Reconhece que o tratamento que recebe na Carolina do Norte é injusto, desumano e, numa revolta pura e lúcida, responde à crueldade de forma proporcional, ironicamente recitando o que aprendeu no treinamento e o pondo em prática. Durante uma madrugada, Joker se depara com o recruta Pyle montando seu rifle no banheiro e urge para que ele pare o que está fazendo e volte pra cama. Diante do burburinho, o sargento sai de seus aposentos a procurar entender o que está acontecendo. Neste momento, o recruta dispara contra o sargento e em seguida contra si mesmo. Explosivo como uma combustão. 


Pyle e Joker são análogos tanto em suas experiências compartilhadas com o coletivo (ambos fazem parte do contingente de jovens aptos a participar da guerra que chegam na Carolina do Norte) quanto em se destacarem dos demais por suas particularidades, mas se divergem na forma que a realidade em que foram passivamente inseridos choca com seu senso de individualidade e como lidam com isso.

Para Joker, esse evento traumático na Carolina do Norte serve como um vislumbre do que seria de fato uma expressão pura de não-conformismo e individualidade, conquistada através da violência. Através da violência, Pyle trai a programação, vai radicalmente contra o que ele supostamente teria que fazer e o faz justamente na noite do dia que simboliza o que seria a conclusão de seu condicionamento: o dia de sua graduação.


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No segundo ato do filme, nos campos do Vietnã, Joker leva um botão do símbolo da paz no colete e no capacete tem escrito 'Born to Kill' (traduzindo: Nascido para Matar, de onde vem o título em português). Quando questionado por um oficial a respeito do símbolo da paz, um símbolo hippie, Joker explica, pressionado, que tentava fazer um comentário sobre a teoria junguiana da dualidade do homem. Sua crítica não passa da camada superficial mas, sem querer, inicia a sua metamorfose na encarnação do cinismo. Soldado, peão da guerra, que carrega um símbolo que representa a paz, Joker deixa de ser homem e passa a ser por si um símbolo ambulante da ironia.


Essa ironia é uma maneira de lidar, sem ação direta, com a própria incapacidade de fugir do dever que considera imoral. É considerada pós-ideológica, ou pelo menos oposta à doutrinação imposta na Carolina do Norte, mas na verdade é precisamente o pensamento que permite a manutenção desse cenário em que, apesar de ser o contrário, Joker aprende a conviver. É condicionado a aceitar que aquela realidade é a única possível e, mesmo tendo consciência de que viajar o mundo para conhecer e matar pessoas de culturas diferentes é imoral, continua participando disso. Como forma de se absolver dessa contradição, a ironiza.


Como diria Mark Fisher em seu livro Realismo Capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Isso significa que todo esforço investido em uma mudança é automaticamente dispensado como inútil para aqueles incapazes de imaginar outra realidade. E o que resta é a aceitação, podendo vir tanto na forma do cinismo de Joker como também na doutrinação completa de seus colegas que se enxergam como caubóis, enxergam os vietcongues como indígenas e não enxergam a problemática nem no que fazem nem na alegoria que adotam.


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Em um dos picos de ação do filme, os vietcongues invadem um dos postos estadunidenses e os soldados se colocam em posição de defesa, atrás de uma trincheira, acertando de longe um a um os invasores, que caem sem muita dramatização. O quadro, sem cortes, coloca os Estados Unidos em primeiro plano e os soldados vietnamitas bem distantes, tão distantes que o que se vê são suas silhuetas, sem rosto. Essa impessoalidade ilustra a indiferença dos soldados pela matança e a negação do inimigo como ser humano. 


Em missão, o pelotão de Joker é surpreendido por um franco-atirador e três dos seus companheiros são fatalmente alvejados. Após identificar com precisão a localização dos tiros, o restante sobrevivente consegue flanquear e neutralizar o atirador. O atirador é uma menina vietnamita, que agoniza no chão após ser baleada. Joker sugere dar um tiro de misericórdia, mas o comandante discorda: ela deve sofrer lentamente como penitência pelo que fez com seus companheiros. Joker, indo contra a maré desse pensamento tribal, decide exercer sua individualidade e executar a menina.


A demonstração de seu individualismo possui uma similaridade com a do recruta Pyle: ambas passam pela participação da violência em sua catarse. O ato de Joker, porém, é a práxis daquilo que lhe foi programado na Carolina do Norte. Assim, seu exercício de individualidade é uma continuação do papel coletivo de destruição e, diferente de Pyle, é maculado por suas próprias contradições morais. Além disso, o ato violento do recruta Pyle representa o fim de um ciclo, enquanto o de Joker, a continuidade.


Dessa forma, o poder que sente de sua escolha é emprestado de uma individualidade já prevista no grande esquema das coisas. E, entendendo isso, abre mão da ilusão de sua agência. Essa é, também, sua maneira de fugir da responsabilidade dos seus atos.


Na cena seguinte, Joker entoa cânticos de guerra enquanto a cidade que seu pelotão limpou é destruída por tanques. Os cânticos, recorrentes no filme, representam uniformidade e pensamento coletivo. Seja uma demonstração de ironia, ou por se conformar à futilidade de sua revolta, a indiferença de Joker diante dessa contradição é o aspecto perfeito para se ser uma máquina de matar conveniente aos interesses imperialistas. A indiferença pode representar também uma entrega completa de seu status como indivíduo, dando lugar à sua condição de símbolo da contradição humana.


Um dos paradigmas marxistas argumenta que as pessoas agem em prol de uma ideologia dominante sem consciência, através de pressupostos papéis sociais herdados subconscientemente que servem de manutenção para uma organização invisível. Na contemporaneidade, diante da democratização da informação e a crescente evidência das injustiças, as contradições entre a realidade e a programação ideológica não são tão simples de ignorar. O que impede, então, as ações diretas reconhecidas como necessárias para alcançarmos a justiça social? Em seu livro O Sublime Objeto da Ideologia, Zizek reformula esse paradigma, citando Sloterdijk: “eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas mesmo assim, continuam fazendo.” Para Žižek, o cinismo é a ideologia dominante da modernidade. É o caminho para subtrair a responsabilidade individual diante das injustiças sistêmicas e aceitá-las como inevitáveis. Assim como Joker, reconhecendo a imoralidade do seu dever, aceita sua inevitabilidade e cumpre-o, enquanto ironiza a sua própria contradição.



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As últimas palavras ditas pelo recruta Pyle, “eu estou em um mundo de merda”, são apropriadas pela narração de Joker na cena final do filme. 


“Eu estou em um mundo de merda, sim. Mas sou forte e não tenho medo.”


O acréscimo dessa autoafirmação indica o esforço de Joker de se assimilar à realidade, consciente de que ela é uma merda. Apesar de reter essa consciência, reconhece seu papel como inevitável na profecia da guerra, essa realidade que é incapaz de mudar.


Nascido para matar, neutraliza sua responsabilidade individual e assim segue seu papel programado como pastor da guerra, se absolvendo de culpa. Esse é o seu caminho de fuga da realidade.


 
 
 

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