MF DOOM antes do almoço pra ficar pensando melhor
- SUSPEITO.

- 13 de jul.
- 5 min de leitura
Como Chico Science me apresentou a grandeza de MF DOOM em absorver o banal enquanto recurso lírico e seu impacto em meu gosto musical.

Todo dia é dia de celebrar Daniel Dumile. Mas a tentação da homenagem de aniversário à um artista tão grande sempre corre o risco do óbvio. Diferente disso, Dumile merece a grandeza do banal, do ordinário — como bem entendia Gil ao sintetizar a beleza da cultura nesse adjetivo. Com a documentação e análise de seus maiores atos tendo já extensa quilometragem no ciclo da internet, aproveito seu aniversário para reviver despretensiosamente um comentário sobre a beleza cotidiana erguida na obra de MF DOOM.
Na composição, às vezes, a própria escolha voluntária de determinada decisão criativa fermenta seu conteúdo, empilha uma força bruta de significado-arte numa ideia receptáculo. A mensagem então, se embeleza pela própria evidência do seu existir. Toda vez que ouço Chico Science cantar uma cerveja antes do almoço é muito bom pra ficar pensando melhor — o meu verso favorito da vida — me vem a vontade de escrever este texto. Sim, uma cerveja antes do almoço realmente é muito bom pra pensar melhor. De certa forma, o Brasil pré-Nação Zumbi já sabia disso, mas possivelmente ainda não tinha pensado isso. Chico Science canta algo que ninguém percebe que já sabe. É essa sensação, sentimento, que provoca o riso, no contato com esse verso. Agora, se todo mundo já sabia, o que é que Chico faz aqui? A magia do artista entra em cena nesse momento. Mais do que na construção de uma nova ideia, se encontra puramente na decisão, ou melhor, no reconhecimento da pertinência de declarar tal ideia. Esse verso supera um inicial tom de estranheza para evocar um sentimento comum e familiar que jamais foi sintetizado com tanta coerência, que pouca atenção lhe foi dada. A própria construção coloquial — e um tanto confusa pra alguns — da frase, encaixa perfeitamente o sentimento nesse lugar ambíguo de estranhamento-familiaridade. Se Chico dissesse “tomar uma cerveja antes do almoço é muito bom pra pensar melhor” passaria batido como um verso-qualquer-coisa. O ficar pensando melhor evoca um estado de catarse informal que traz o gosto da cerveja direto à boca e lhe faz entender o que de fato significa “ficar pensando melhor”. Carrega um sentimento de uma complexidade distinta do milenar amor, da pré-histórica felicidade, da eterna tristeza e da visceral raiva — e aqui relembro: complexo e profundo são coisas diferentes, o oposto de complexo é simples, o de profundo é superficial. existem coisas simples e profundas, complexas e superficiais.
A forma que se entra numa faixa é algo muito importante, ou pelo menos muito vigiado no rap. É como entrar pela primeira vez numa sala, seja com pessoas conhecidas ou não. É o primeiro momento em que todos vão olhar pra você, e muitas vezes definirá se continuarão olhando ou te esquecerão nos próximos segundos. Quando é a vez de Ghostface Killah entrar em Bring da Ruckus, percebi que meu olhar o acompanharia pelo resto da — minha — vida.
Ghostface, catch the blast of a hype verse
My glock bursts, leave in a hearse, I did worse
I come rough, tough like an elephant tusk
Ya head rush, fly like Egyptian musk
Aw shit, Wu-Tang Clan spark the wicks an’
However, I master the trick just like Nixon
Causin’ terror, quick damage ya whole era
A entrega, a embocadura, a interpretação, a métrica, a percussividade de cada palavra, todos os elementos sintetizados nos versos iniciais de Ghostface em Bring da Ruckus me fizeram devorar com atenção todo o resto de sua obra. Esse é o poder de uma boa entrada. Cada vez que ouço esse verso, que o reouvi até o cansaço, que li a letra pra memorizar cada palavra, cada entonação certa, que subi a ladeira de casa cantando, quando vi Wu-Tang em São Paulo e cantei junto, cada camada de peso que se adicionava à força desse verso, melhor eu entendia minha relação com meus artistas de rap favoritos, e o potencial escondido em uma possível rejeição à toda essa
estrutura.
Num gênero que recompensa os pesos pesados, o que aconteceria se alguém rimasse sobre doritos? Bom, a porta para essa reflexão já foi aberta há muito tempo e um milhão de vezes. Minha atenção aqui está não no caráter geral do mundo pós-underground do qual MF DOOM é trunfo, mas especificamente em sua relação com e seu papel na exclamação inicial do texto.
Ouvindo o Operation: Doomsday, revivi a vontade de escrever uma meditação que sempre existiu em minha cabeça. Na décima segunda faixa, DOOM me lembra uma de suas características que mais me diverte, mesma de Chico Science. Hey! começa com uma linha simples, banal, que passou batido milhões de vezes, mas hoje fica presa em meus ouvidos: I only play the games that I win at. Hoje, pela enésima vez, redescobri a grandeza de MF DOOM em absorver o banal enquanto recurso lírico e seu impacto em meu gosto musical.

Diametralmente oposto ao catch the blast of a hype verse de Ghostface, está o I only play the games that I win at de Daniel Dumile. Mais do que a decisão de começar a faixa assim, está a genial estranheza em sua própria constatação. Ou melhor, no gênio de encontrar força criativa na atividade de, de fato, admitir: “eu só jogo aqueles jogos que eu ganho”. Quem no mundo se orgulha de dizer isso? Por quê essa fala é pertinente pra abrir uma faixa? Veja, DOOM não diz "eu ganho todos os jogos que eu jogo" — uma confiança muito fácil de imaginar qualquer rapper versando — , mas que apenas joga os jogos nos quais ele ganha. De novo, a força do verso está em sua mera existência. Logo, a força do artista está na mera escolha de permitir que o verso exista. Não foi a primeira vez nem será a última que alguém formou um pensamento parecido ao de I only play the games that I win at. Mas talvez seja a primeira vez que alguém achou relevante pôr isso num disco de rap. Consigo pensar num punhado de bares, salas de aula ou quadras em que algo do tipo seria dito, mas é em Operation: Doomsday que sinto a pulsão de escrever este texto. Não é honroso ou admirável admitir o que MF DOOM admite, mas pouco importa. Para alguns, também soará pouco nobre tomar cerveja antes do almoço, muito menos ficar pensando melhor por isso. É essa irreverência do pouco importa que vira piada pra muitos, quando se compara a genialidade dos Chicos, por exemplo. Já vi gente ofendida com a comparação entre Science e Buarque. Bom, quem é melhor, eu não sei, e sinceramente não ligo. Gosto de viver num mundo com Chico Buarques e Ghostface Killahs na mesma medida que Chico Sciences e MF DOOMs, mas uma coisa é preciso ser dita: Construção surpreende em preencher a totalidade do que uma canção pode ser. MF DOOM surpreende organizando a contraluz, habitando o lado escuro da lua e construindo discernimento nas sombras, nas texturas. A organização musical interna de Chico Science e Daniel Dumile opera pensando no que ninguém pensa. E o que seria isso? O que todo mundo pensa. Eu também só gosto de jogar jogos que eu ganho. Na vez que tentei compor uma música, deveria ter pensado nisso.







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