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O HOTEL OVERLOOK, A PROPRIEDADE PRIVADA E O GENOCÍDIO INDÍGENA EM O ILUMINADO

Atualizado: 13 de jul.


Texto e arte por: Victor Aguiar
Texto e arte por: Victor Aguiar

Todo set de Kubrick conta uma história por si só. Em O Iluminado, a história é sobre

assassinato. Ainda mais específico, sobre o assassinato sistêmico dos povos nativo-americanos. O Hotel Overlook, um hotel construído por colonos sobre um cemitério indígena, é o local de interesse do filme. Além de ter uma história sangrenta, sua construção cenográfica esconde várias pistas que apontam para um subtexto sobre o genocídio nativo-americano, presentes na decoração do hotel em artes indígenas enquadradas, fotos, flechas, padrões de tapestaria e estátuas de guerreiros apache (detalhes observados no início do filme pela esposa de Jack Torrance, Wendy Torrance).


Tapeçarias e um papel de parede com padrões indígenas compõem a decoração da sala de estudo do hotel
Tapeçarias e um papel de parede com padrões indígenas compõem a decoração da sala de estudo do hotel

Além da cenografia, o figurino também acena para essa temática: Wendy veste roupas com franjas, ponchos (peças típicas de moda nativo-americana e também associada com hippies na época) e que estampam padrões semelhantes aos que decoram o hotel. Ressalto que o filme é uma adaptação completamente diferente do livro em pontos importantes: Além da ausência da história violenta do hotel contra os nativos, a Wendy do livro é descrita como uma mulher loira. No filme, quem dá vida à personagem é a Shelley Duvall, que tem cabelos pretos, lisos e longos — semelhantes ao estereótipo de uma mulher indígena. 


Nesse quadro, a roupa de Wendy estampa uma cabana e outros símbolos associados a indígenas
Nesse quadro, a roupa de Wendy estampa uma cabana e outros símbolos associados a indígenas

A metáfora é acrescentada à história através da construção visual do filme: todas essas escolhas da direção de arte, somadas ao contexto histórico da locação, sublinham a pauta do genocídio indígena. Os artefatos indígenas, as estátuas e a decoração do hotel podem ser entendidos, além de uma mensagem subliminar do diretor, como troféus sádicos do triunfo sangrento dos colonos no conflito pela terra. Superficialmente, a decoração aparenta ser meramente uma escolha estética e não simbólica de uma conquista violenta, como indica a reação de admiração de Wendy.


Detalhe: Há também a teoria popular de que o subtexto do filme é sobre o Holocausto, reforçada pela origem judaica do Stanley Kubrick. Particularmente, acredito que nenhuma é excludente da outra, uma vez que Hitler, no Mein Kampf, cita o genocídio dos povos nativos da América do Norte como um exemplo de limpeza étnica bem-sucedido.


O filme pode ser entendido também como um comentário sobre misoginia, violência e feminicídio na estrutura familiar. Isso não só não existe isolado à metáfora de genocídio, como também leva a interpretação a um lugar ainda mais amplo: Engels pontua, em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, que o surgimento da propriedade privada transformou a sociedade em uma dividida em classes. Essa divisão se estende à estrutura das famílias, onde a mulher ocupa um lugar de subjugação diante do homem. Wendy simboliza, em sua apropriação estética, a mulher indígena e, sendo uma mulher branca, evidencia a universalidade da violência sistêmica na ordem ocidental.


Wendy Torrance
Wendy Torrance

No Hotel Overlook, signo da propriedade privada, paira uma influência maligna sobrenatural. É a espiritualização desta ordem violenta que, liderada pelo homem branco, se estende do colonialismo ao patriarcado e derramou e derrama sangue para se estabelecer e se manter. Essa energia espiritual possui Jack Torrance e o leva a tentar matar sua família. E a história do hotel não é só marcada pela morte dos povos nativos em seu processo de construção: no filme, ele é infamemente conhecido também pelo caso relativamente recente do caseiro antecessor de Jack, Charles Grady, que matou a esposa e duas filhas. Observe que as violências que o envolvem desde a sua origem partem sempre de um homem branco, classe que ocupa (de um ponto de vista racial e de gênero) o topo da cadeia social, para indivíduos de classes abaixo. Além de terrorizar a própria mulher e o filho, a outra vítima de Jack (e única fatal) é um homem negro: Dick Hallorann, o chef da cozinha do hotel.


A influência sobrenatural do hotel se materializa em entidades que influenciam as ações de Jack. Todas essas entidades são homens brancos, com exceção da mulher do quarto 237 e das gêmeas — que só o filho da família Torrance, Danny, chega a ver. Charles Grady aparece como entidade na forma de um garçom no bar do hotel com o nome Delbert Grady. Ele entrega a Jack a missão de "corrigir", isto é, matar sua família, assim como ele fez. Pode-se interpretar como uma referência ao fato de que a violência colonial foi herdada e perpetuada até hoje pelos sucessores dos indivíduos que a iniciaram. "O fardo do homem branco", frase citada por Jack, faz referência à crença de que o homem branco tem o dever divino de "corrigir" outros povos e, para fortalecer ainda mais esse ponto, Charles usa um insulto racial para se referir a Dick.


"Well... you know Doc, when something happens it can leave a trace of itself behind. Say like... it's when someone burns toast."
"Well... you know Doc, when something happens it can leave a trace of itself behind. Say like... it's when someone burns toast."

Dick, assim como Jack e Danny, é capaz de sentir a influência maligna do Overlook. Diferente de Jack, porém, ele não é possuído por essas entidades: ele simboliza um lado oposto da espiritualidade, oposto às tendências destrutivas do Overlook. Esse lado pode funcionar como uma representação das religiões de origens africanas e indígenas, consideradas demoníacas e dignas de serem destruídas por qualquer meio necessário. Sua imunidade vem justamente da consciência de seu lugar na história do hotel: Dick Hallorann é o negro e o indígena, declarado como inimigo mortal da missão corretiva, e recebe um fim trágico pelas mãos do homem branco.


Essa sensibilidade pode ser entendida também como um símbolo de consciência racial e de classe. Wendy que se impressiona com a decoração sem dimensionar a problemática por trás —, os administradores que mencionam casualmente a história violenta do hotel e os que se hospedam no Overlook luxam de uma falta de consciência da dimensão dos terrores que sucederam em sua concepção. Danny chega a essa consciência através das visões de seu amigo imaginário, Tony. Em uma dessas visões, enxerga uma representação literal desses terrores: o elevador do saguão do hotel transborda de sangue, simbolizando todo o sangue derramado para viabilizar sua construção. Jack também alcança essa consciência através de entidades terceiras — nesse caso, as entidades do hotel. Apesar de inicialmente reagir chocado com as visões, eventualmente aceita e incorpora suas mensagens de violência, entendidas como a transmissão de uma missão divina.


Uma das cenas mais icônicas do filme pode ser interpretada como uma metáfora para a violência colonial que o hotel tenta esconder por detrás de sua decoração luxuosa
Uma das cenas mais icônicas do filme pode ser interpretada como uma metáfora para a violência colonial que o hotel tenta esconder por detrás de sua decoração luxuosa

Ao descobrir que ele também é sensitivo, Danny questiona Dick sobre a influência maligna do hotel. Dick explica, em outras palavras, que essa influência é uma herança da violência que originou a estrutura. É interessante notar que, enquanto a sensibilidade espiritual de Jack Torrance o motiva a matar, Dick Hallorann é influenciado a tentar proteger a família Torrance. Uma espiritualidade é usada como razão divina para a matança e outra para a preservação da vida.


Após sua morte, Jack aparece em uma foto pendurada em uma das paredes do hotel. Na foto, é possível ver várias pessoas em uma festa similar às visões que Jack tinha do bar do hotel, datada de 1927. A essência de Jack está eternizada como um fantasma dentro de uma construção que representa, do material ao espiritual, a violência colonial. E o fato de que Jack sempre esteve presente no hotel ilustra a perpetuidade dessa violência. Em entrevista, Kubrick interpreta esse final como uma revelação de que Jack é a reencarnação de outra pessoa cuja história também envolveu o hotel. Assim como o caseiro anterior, Charles Grady, que assume outra identidade quando se manifesta como entidade do hotel, Jack também é duas pessoas e, considerando que desde as suas origens até o momento o hotel é marcado por violência, é possível que em sua encarnação anterior tenha sido tão assassino quanto.


Stephen King, o autor do material original, não gostou dessa adaptação. Uma das críticas dele é que o personagem Jack Torrance era para ser uma pessoa boa influenciada pela maldade do Hotel Overlook. O ator Jack Nicholson, conhecido na época por seu papel como o paciente de um manicômio no filme Um Estranho no Ninho, não aparenta ser uma pessoa sã já no começo do filme. Não há uma transformação muito radical do seu caráter e em quase todo diálogo particular que tem com sua família, até antes de supostamente enlouquecer, Jack é rude e impaciente. Essa mudança enriqueceu bastante o texto: não é o hotel sozinho que o influencia a matar,  já existia nele um desgosto pela família.


Jack Nicholson
Jack Nicholson

Jack Nicholson é muito expressivo e faz esse papel perfeitamente por isso. Em mais de uma cena, por uma fração de segundo, ele olha diretamente para a câmera, como se estivesse encarando quem está assistindo. É uma tentativa de transmitir que muitas vezes a entidade maligna é uma pessoa do seu convívio próximo que apresenta esse mesmo comportamento: um pai alcoólatra, um companheiro abusivo e por aí vai...


O Hotel Overlook
O Hotel Overlook

A mudança radical dessa adaptação acrescenta à metáfora o fato de que tendências homicidas estão inatas e presentes dentro da psique do homem médio. A civilização ocidental, como a conhecemos, foi construída através de assassinato e roubo de terra. Além disso, o passado não existe em paralelo ao presente e, como sabemos, a violência continua da mesma maneira. Ainda há populações nativas sendo deslocadas para a construção de mais hotéis como o Overlook pelo mundo e, para se manter o sistema que permite essa continuidade, a violência e seus executores — os Jacks — são necessários. 


O controle do Overlook sobre as ações de Jack representa também o culto à propriedade privada, que influencia o homem dessa maneira: a existência dessa construção massivamente maior que ele ou qualquer outro indivíduo é sua justificativa para a barbárie. Os proprietários originais do Hotel Overlook tiveram que matar indígenas revoltados com o desacato de seu cemitério para conseguirem construí-lo, motivados com a missão de civilizar, ou "corrigir" essas regiões. Em O Iluminado de Kubrick, o terror é a própria fundação da sociedade burguesa.


"You set them up and I'll knock them back, one by one. And then, apropos of nothing: White man's burden, Lloyd, my man."
"You set them up and I'll knock them back, one by one. And then, apropos of nothing: White man's burden, Lloyd, my man."

 
 
 

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