O SILÊNCIO DAS OSTRAS, CHIHIRO E SER CRIANÇA NUM MUNDO QUE NÃO TE ESPERA
- SUSPEITO.
- 4 de ago.
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Atualizado: 6 de ago.
Preciso começar esse texto falando sobre A Viagem de Chihiro e as personagens de Hayao Miyazaki. Por uma mistura de relevância presente e olhar aprendido, quero falar sobre O Silêncio das Ostras mas só me vem Chihiro. Vejo Chihiro em Kaylane e vejo Chihiro em mim quando pequeno. Encontrei minha criança nos olhos de Kaylane vendo coisas que nunca vivi, como Miyazaki fez lá atrás, num Diego que ainda não escrevia. Então esse texto de hoje é por Kaylane, por Chihiro e por mim.
Texto por: Diego 'dika' Blanco


Provavelmente você já ouviu a piada de que dá pra sintetizar qualquer filme do estúdio Ghibli em algum desses três temas: “aviões são legais”, “guerra é ruim” ou “meninas crescem”. Os dois primeiros possuem mais óbvios elementos intimistas e autobiográficos do autor, mas é no último que encontro maior profundidade, mistério e encanto na obra de Miyazaki. As crianças de seus filmes são sempre peculiares e a sua construção enquanto personagens exploram facetas de uma infância pouco lembrada – ou considerada – por adultos. A Viagem de Chihiro não nos conta a história, tampouco qualquer motivação de sua protagonista. O medo, longe de ser definitivo em Chihiro, ainda é o sentimento que mais acostumado está em sua superfície. Espalhado por toda sua pele, arrepiando seus cabelos e fazendo uso de seus dedos para se agarrar em tudo que consegue, o medo dá as caras desde antes dela sair do carro, e demora pra se desgarrar. Mas pra entender Chihiro nossa atenção não deve estar no medo, senão em seu olhar. A magia do filme, maior do que qualquer feitiço de Yubaba ou truque de Haku, está na força do olhar de uma menina, criança. É esse olhar que primeiro nos traduz o mundo, para depois desbravá-lo. A complexidade da personagem é dada por esse espaço entre a cautela e a ação, e é a dialética entre ambas que marca tanta força em Chihiro. O que Miyazaki faz aqui então é demonstrar como crianças – e meninas fundamentalmente – carregam a natureza do mundo na medida que o enfrentam. Em suas aventuras ghiblianas, essa luta de energias internas e externas, esses conflitos entre o medo e a coragem frente à inevitável rigidez da vida se conversam até a resolução. No filme que este texto obedece não é assim. Na vida real também não. Zeniba e Kamaji não existem – apesar de eu acreditar em Haku. O que sim temos são crianças, meninas como Chihiro. Kaylane é uma delas.

A família de Kaylane vive numa cidade do interior de Minas Gerais, dominada pelo tédio, pelo cansaço e por uma mineradora implacável dona de tudo e todos. A condição do pai exige cuidados, ela e seus irmãos precisam ser criados, a casa mantida, e a mãe é uma só. Desde buscar a pensão do marido e o salário do filho pessoalmente na mineradora a assistir às procissões fúnebres que passam pela praça, os olhos de Kaylane não estão ausentes em nenhuma atividade feita pela mãe. Onde a caçula pouco fala, muito olha; e como os próprios irmãos brincam, “ela nunca responde, nunca fala nada”. Kaylane é criança, mas já entendeu que algum dia vai ter que ser mulher e pobre. Seja lá o que signifiquem, são duas coisas difíceis de ser. Toda fração de segundo é valiosa para esses olhos. Cada movimento, expressão, símbolo, código, tudo é imprescindível para essa digestão ocular que parece garantir a sobrevivência de Kaylane no mundo. Característica disso se dá na própria composição dos planos, onde o mundo se descentraliza na imagem para alinhá-la à Kaylane. Em alguns momentos mais óbvios que outros, como quando a mãe e ela observam o rio morto, de costas para a câmera, essa intenção estilística alcança a superfície e nos fazer perceber que durante esse tempo inteiro, ela não funcionava somente com a realidade apresentada, senão através de Kaylane como testemunha.
Enquanto a filha põe o peso de sua sobrevivência em traduzir a realidade pela atenção, o olhar da mãe é completamente alheio. Sinara Teles interpreta uma mulher que vive entre o sonho e a realidade, sem alcançar nenhum dos dois. O sonho é impossível e a realidade é intragável. Uma mulher que se prostitui pelo cigarro de seu marido doente tem Minha Pequena Eva como a trilha sonora de seu sonho litorâneo. Sua vontade é de viver cantando, de tocar com os pés as ondas do mar, e é essa mãe quem tem que explicar pra filha, que o lago-sintoma no deserto ecocida deixado pela mineradora é impróprio pra banho.
O circo chega na cidade. Kaylane pergunta porque que as pessoas morrem. A mãe sonha em ser cantora e ter um colar de pérolas, colar de artista. Ela leu numa revista que lá no mar, existe uma coisa chamada ostra, tipo uma conchinha, que dentro guarda essa tal de pérola. Em algum lugar do mundo existe algo lindo que vale a pena olhar. Em algum lugar do mundo.
Ao redor de Kaylane, o mundo acontece. Sem pérolas ou ostras, e eventualmente sem a mãe, que desaparece. A Kaylane criança é o elo com Chihiro. Por consequência, penso na minha infância: Quando lembram por mim de meus momentos de pessoa pequena, são inúmeras as histórias divertidas, que aprendi a transformar em memórias. Mas quando é minha vez de lembrar, só penso agora em Kaylane. A única coisa que alcanço com a memória é uma criança que não piscava, que não perdia uma fotografia mental, que rastreava cada mão, olhar, expressão de cada adulto, a velocidade de cada carro, o movimento de cada pássaro, as letras, sejam pequenas ou grandes, de cada outdoor ou placa. Não havia tempo para viver um mundo que precisava, pela minha sobrevivência, ser observado. Minhas fotos de pequeno carregam os mesmos olhos abertos e atentos de Kaylane. Foram nesses olhos – e por conta destes – que percebi o tamanho desse filme.

Marcos Pimentel capta muito bem – e faz disso recurso – como a criança antes de tudo observa a mãe. Entendemos rápido, quando bebês, que nossa mãe é a intermediadora entre nossa existência e o mundo. Ao ingerir qualquer experiência nova precisamos do termômetro materno para entender como interpretar aquilo. É comum ver bebês grudando o olho na mãe logo após um susto para decifrarem se devem chorar ou não. E o normal é que esperem primeiro alguma reação antes de tomar sua decisão. A criança, como o bebê, é um corpo que existe, tão humano quanto qualquer outro. Tão vivo, senão mais, do que qualquer outro. Hayao Miyazaki parece ter entendido isso melhor do que qualquer adulto – por isso suas personagens. Kaylane então, como Chihiro e como o nosso bebê hipotético, precisa ter a quem encontrar com esse olhar. A questão é que sua mãe existe entre lapsos. Com tão poucas respostas – o próprio “não sei” é uma bem frequente –, não se contornam as perguntas da filha. É essa mãe, que não para de cantarolar os seus sonhos, a sua inicial tradutora do mundo. Talvez por isso a calibragem do olhar.
Esse caráter hitchcockiano ao nos terceirizar o mundo destruído pela mineradora feito com o olhar de Kaylane é o que nos deixa entender a personagem com tanta profundidade. Também é o que relaciona a sua tragédia pessoal com a tragédia social dos crimes ambientais que assolam a comunidade. Mais do que observar uma personagem que observa o mundo, acompanhamos a construção de um olhar e de uma compreensão de mundo gradual de um corpo alheio a algo no qual paradoxalmente está inserido. Essa é a força narrativa e política de ter uma protagonista criança, menina. Quando o filme alcança a Kaylane adulta, passamos a compreender exatamente o que significa essa relação contraditória entre o alienígena e o familiar no mundo que Bárbara Colen interpreta. Passamos a lidar com um filme que encurtou a distância entre o olhar da protagonista e o seu entorno. A mãe continua desaparecida, todos os irmãos são escravos do capital e o pai agora está morto. Através de um fascínio por insetos bastante coerente com sua curiosidade infantil, a simbologia da cigarra ganha força ao velar o corpo do pai: A cigarra, talvez como a mãe, ou como sua esperança, “morreu de tanto cantar”. Cantando ou não, tudo e todos morrem, e a pergunta do porquê disso, feita por sua criança, continua sem resposta.
As duas personagens iluminadas por esse texto são construídas numa específica relação entre contradições como a coragem e o medo, que com o tempo se justificam. Chihiro mastiga tanto medo que anaboliza coragem. Kaylane engole tanta coragem de criança que quando cresce, vomita medo. Por ambos serem tão solitários e sintomáticos, sempre se relacionam. O mundo é implacável. O Silêncio das Ostras carrega mais camadas porque o túnel onde Kaylane entra, diferente do de Chihiro, à transporta de volta pra casa. O mundo é aquele ali, não existe fábula. É uma cobra que engole o próprio rabo. O pesadelo é feito de lama e a esperança é um inseto encontrado entre escombros.

Este texto, menos um panfleto sobre o filme e mais uma digestão pessoal de suas personagens, tenta ser um convite a assistir o encanto de Lavinia Castelari interpretando a fascinante Kaylane no longa de Marcos Pimentel. Também uma celebração de protagonistas femininas, crianças, tão complexas como Chihiro num exercício reflexivo sobre a complexidade da infância e o primeiro encontro de olhos tão profundos com a velha e áspera dureza da vida.
Assisti O Silêncio das Ostras na Saladearte do MAM, em Salvador. Numa segunda-feira, com uma amiga querida que não via há muito tempo. Não perca a chance de olhar com os olhos de Kaylane, assista O Silêncio das Ostras nas telas do cinema.



