As glórias do futebol estão sendo manchadas por oportunistas que não entendem o significado real das conquistas e tentam se autopromover invadindo momentos históricos que não os pertence.
Recentemente vimos a Argentina se sagrar campeã, depois de 30 anos, da Copa do Mundo. A última vez que os hermanos levantaram a taça foi no México, em 1986, numa campanha marcada pelo protagonismo de um dos jogadores mais icônicos da história do esporte mundial: Diego Armando Maradona. As belíssimas fotografias do momento eternizaram o momento em que Maradona, que já era destaque entre seus contemporâneos por ser um jogador cheio de habilidade e de polêmica, subiu ao patamar de ser um dos maiores jogadores de futebol da história mundial, ao lado de Pelé, Beckenbauer, Cruyff e outros ícones que o precederam.
No mesmo século, duas copas depois, nosso Brasil teve o mesmo privilégio. Numa final dramática contra a Itália, decidida nos pênaltis, o Brasil conquistou sua quarta conquista mundial após 34 anos. A nossa memória coletiva dessa conquista é a da voz de Galvão Bueno gritando o icônico “É TETRA!” em imagens onde se encontra abraçado ao nosso maior ídolo: Edson Arantes do Nascimento, o Pelé. Além da voz icônica do recém-aposentado narrador, o registro (de pertinho) de Romário beijando a taça com a bandeira do Brasil nas costas, ao lado do queridíssimo Dunga, é uma das lembranças instantâneas que temos quando se fala do Tetra. Até mesmo pra quem não era nascido na época.
Impossível deixar de citar também o belíssimo registro do beijo triplo entre Rivaldo, Ronaldo e a Taça da Copa do Mundo de 2002. Nosso último título, conquistado no século presente, deu continuidade ao ressurgimento da Amarelinha como a seleção que aterroriza qualquer um que venha jogar contra, seja ele alemão, português, equatoriano, argentino, enfim. Esse título é muito marcante também por ter sido conquistado pela geração que fez muita gente, inclusive quem está escrevendo esse texto, se apaixonar pelo futebol. Ronaldo, Ronaldinho, Rivaldo, Cafú, Roberto Carlos, Dida, Kaká e todos os outros são, como jogadores, ídolos inquestionáveis da nossa geração.
Todos esses registros acompanham histórias plenas de reviravoltas, jogos emocionantes e lances inesquecíveis. A responsabilidade do registro é justamente a de eternizar a atmosfera e os sentimentos que acompanharam os momentos que são o resultado dessas histórias. Essa representação de um momento é um papel importante, por isso é necessário que esses registros sejam perfeitos. Os fotógrafos se certificaram, primeiramente, se seus equipamentos estavam em pleno funcionamento, se as lentes estavam limpas, se os filmes não estavam queimados e todas as outras particularidades técnicas envolvidas na fotografia.
Indo além do aspecto técnico, outra coisa é essencial para se assegurar que a captura do momento de uma cerimônia de entrega de taça de Copa do Mundo seja perfeita. É necessário que o momento em movimento seja perfeito, que não seja marcado por fatores externos que venham corromper o verdadeiro significado da cerimônia: a coroação de uma equipe que atravessou todas as fases do torneio, superando dificuldades e momentos que exigiram competência, superação dos limites e um pouco de sorte. A celebração, com mérito, da equipe que no fim se mostrou ser a única verdadeira merecedora dessa honra.
Assim tem sido de 1930 até hoje. Porém, nessa última cerimônia, um fator externo contribuiu para que os registros não tenham sido totalmente perfeitos. Apesar de ser impossível registrar Lionel Messi levantando a taça do Mundial (a maior de todas do futebol e possivelmente a única que faltava em sua carreira lendária) e a imagem não ser no mínimo histórica, houve um esforço de algumas partes para que a cerimônia não fosse só sobre a equipe vencedora, como deve ser, e assim perdesse um pouco de sua magia.
Para introduzir o assunto, vou pedir que você observe essa imagem da cerimônia do título da Copa do Brasil de 2022 do Flamengo, que faz um paralelo:
Sabe quem é esse cara de máscara? Por incrível que pareça, ele não é jogador. Nem faz parte da comissão técnica. Nada disso. Ele é nada mais, nada menos, que um MC paulista. E o que ele tem a ver com o título da Copa do Brasil do Flamengo? Não sei te dizer se ele teve alguma contribuição no progresso da conquista, mas o fato é que ele está eternizado ao lado dos jogadores (visivelmente desconfortáveis) no registro da cerimônia.
Deduzir o que ele estava fazendo ali é simples: foi convidado, por ser famoso e rico, por alguém que tinha o poder de colocá-lo para assistir o jogo no estádio (muito provavelmente de graça) e se viu no direito de invadir o campo durante a cerimônia. Como não foi barrado por ninguém e acabou saindo nas fotos do momento, conclui-se que ele realmente tinha esse direito. Esse é o influencer, o agente do capitalismo responsável por estragar a beleza das glórias.
Numa cerimônia que, em essência, se trata de coroar o esforço de uma equipe de técnicos e atletas que se mostraram superiores aos demais competidores, não deveria haver espaço para alheios que veem no registro desse momento especial uma oportunidade de promoverem sua imagem.
No caso paralelo, o da Copa do Mundo, o episódio é ainda mais absurdo: além de ser uma competição de importância e história bem maior, o influencer em questão se viu no direito de TOCAR E BEIJAR A TAÇA. Detalhe: essa taça da cerimônia é a original. É a mesma taça que vimos Maradona levantar; que Romário, Rivaldo e Ronaldo beijaram. Como se não bastasse tocá-la, no vídeo podemos ouvir claramente a superfície da taça sendo arranhada por um dos anéis do cidadão.
Ao permitirem essa liberdade a um indivíduo que não tem absolutamente nenhum merecimento de tocar a taça da Copa do Mundo (ainda mais se tratando de uma personalidade que não tem nenhuma relação sequer com o esporte) sua história não está sendo respeitada e seu significado sendo ignorado. O protocolo da FIFA só permite que pessoas seletas (jogadores ganhadores do título e chefes de estado, por exemplo) possam tocá-la. O indivíduo das fotos é amigo pessoal do Gianni Infantino, presidente atual da instituição. E claramente está acima do protocolo.
Deixando de lado essa conversa de protocolo e abrindo mão do aspecto material da Copa do Mundo, essa situação ainda permanece inaceitável. Como dito acima, a cerimônia é, por essência, sobre a equipe ganhadora. Claro que é comum que a imprensa e amigos e família dos jogadores invadam o campo, mas esses indivíduos são, na história das celebrações, personagens que têm seus papéis no registro e na construção da atmosfera da celebração coletiva. As câmeras, os beijos nos filhos e nas esposas, tudo isso faz parte da mágica do momento.
A questão é: o influencer que invade o campo não está lá como representante do sentimento coletivo e sim como representante de sua própria marca. Aquilo é, pra ele, nada mais que um momento de promoção. Promoção de sua importância, por ter o privilégio do acesso livre e promoção de sua influência, por ter fotos de perto com jogadores campeões. A presença dos cartolas, por exemplo, mesmo sendo um aspecto indesejável, é algo que aprendemos a tolerar, porque os mesmos geralmente reconhecem que o momento não é deles e não partem pra cima dos jogadores para roubar seus holofotes.
Mas o que indigna de fato não são as intenções oportunistas dos influencers. Qualquer um pode invadir o campo e tirar uma selfie com o Messi, é bastante comum inclusive. Na verdade, já presenciei um momento onde um indivíduo invadiu o campo para tirar foto com o jogador JACARÉ, do Bahia. Faz parte do esporte, estamos acostumados. O que indigna é que, enquanto esses torcedores comuns recebem punições, até exageradas, por quebrarem o protocolo de segurança dos estádios (leia-se: deixar escancarado que os jogadores não estão protegidos de fato, a segurança dos estádios é precária e a polícia só tá ali pra bater em torcidas organizadas mesmo, mas vamos deixar esse assunto pra outro texto), esses influencers possuem carta-branca para fazer o mesmo e até pior - porque invadir o campo não é nada comparado a tocar numa taça de Copa do Mundo sem ter o devido direito.
A consequência dessa folga aos ricos e famosos, cedida pela corporativização do esporte, é a corrupção dos registros dos momentos históricos. Imagina você acompanhar, por uma temporada inteira, seu time ganhar um título e no registro fotográfico oficial que o marca você ver a Anitta levantando a taça. Se você for um apaixonado por futebol como eu, esse título faz parte da história do seu time e da sua história pessoal. Como você vai explicar isso para seus filhos e netos? Absurdos (ou não?) à parte, essa situação é um sintoma de que as marcas, sejam elas as multinacionais ou os indivíduos-marca, estão cada vez mais engolindo o esporte.
Não podemos deixar que indivíduos que não entendem o significado das conquistas contaminem registros que são históricos. Precisamos expulsar os oportunistas do futebol e evitar que apareçam ao lado dos verdadeiros donos das glórias do esporte como se fossem tão ou mais importantes quanto. Assim certificando que esses momentos não percam seu significado.
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