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ME AFOGO QUANDO TENHO QUE CANTAR HORROR



Dos violões tristes porém esperançosos da Nueva Canción de Victor Jara à guitarra deprimida e violenta do hardcore emotivo da Asamblea Internacional del Fuego, se mantém a memória da sangrenta ditadura militar chilena através da música. Os dezessete longos anos da ditadura de Augusto Pinochet sobre o Chile, após um período de renovação política e cultural marcado pela mobilização da esquerda e pela Nueva Canción Chilena, movimento musical que buscou recuperar as bases da música folclórica andina encabeçado por artistas como Violeta Parra, Víctor Jara, Quilapayún, Héctor Pavez e Inti-Illimani, marcaram não somente as gerações que presenciaram o terror mas também as que nasceram posteriormente, mobilizando a sociedade chilena, moldando sua cultura e direcionando esforços políticos para que não se repita, perdoe ou se esqueça.


“Cuando hablen de nuestras debilidades, 

hablen de los tiempos de los que se han escapado del llanto.

Me ahogo cuando tengo que cantar espanto, 

como el que vivo y en el que muero, espanto.”


Regreso a Casa, de Tenemos Explosivos


Na manhã de 11 de Setembro de 1973, após tentativas frustradas de tomar o poder através da via institucional por meio de um impeachment, as forças militares do Chile, lideradas por Augusto Pinochet, nomeado chefe do exército pelo presidente Salvador Allende, marcham por Santiago, cercando o complexo industrial e seus trabalhadores, base de apoio do presidente, assim como os prédios oficiais do governo. Allende, eleito em 1970 pela coalizão partidária Unidad Popular, que unia diversos partidos da esquerda chilena, promoveu a estatização de empresas e iniciou uma reforma agrária, sinalizou esforços para o início de uma transição econômica visando a nacionalização da produção e da terra no Chile, atacando diretamente os planos dos grandes latifundiários e das oligarquias associadas ao imperialismo estadunidense, nesse período especialmente predatório na América Latina. 


Allende em frente ao Palácio de La Moneda no dia do golpe.


Salvador Allende foi assassinado durante o cerco ao Palácio de La Moneda após seu histórico último discurso, transmitido pela Rádio Magallanes, enquanto se ouvia tiros e bombas ao fundo. Negando a oferta de exílio, denunciando a traição dos militares e expressando sua posição em defesa do Chile e dos direitos conquistados pelo povo, é martirizado.


Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores! Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que o meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a perfídia, a covardia e a traição.

Último discurso de Salvador Allende, 11 de Setembro de 1973


Cinco dias após o golpe de estado e o assassinato de Allende, Víctor Jara, membro do Partido Comunista, artista e compositor da Nueva Canción Chilena é preso, levado ao Estádio Chile, arena multiesportiva, hoje nomeada em sua homenagem, próxima ao Palácio de La Moneda. No período, foi convertida em campo de concentração destinado a opositores do regime de Pinochet. Lá, ele é torturado e assassinado, tendo suas mãos quebradas e zombado aos gritos de “Toque seu violão agora, comunista!”, pelos militares que o mantinham cativo. Jara, junto com Allende, segue sendo possivelmente a vítima mais reconhecida e emblemática dentre os confirmados 3 mil mortos e os incontáveis desaparecidos.


“Ay, canto, qué mal me sales

Cuando tengo que cantar espanto.

Espanto como el que vivo

Como que muero, espanto.”


Estadio Chile, de Víctor Jara


 Victor Jara em Helsinki, Finlândia no ano de 1969 em um protesto contra a guerra do Vietnã



NUEVA CANCIÓN


Em um período de urbanização e modernização, marcado por expressivo imperialismo, especialmente o cultural, em que a rádio, principal meio de difusão da música, era tomado por grupos de Nueva Ola (do espanhol, nova onda), gênero e fenômeno cultural reconhecível em toda América Latina, que buscava reproduzir o estilo das bandas estadunidenses, semelhante à Jovem Guarda no Brasil. Este, que decai rapidamente por conta da British Invasion e da Beatlemania no mesmo período. Posteriormente, também perde popularidade tendo em vista os crescentes debates políticos no campo progressista tomando forma na sociedade chilena. Nesse contexto de efervescência cultural, o trabalho de pesquisa, compilação e catalogação do folclore chileno efetuado por Violeta Parra em suas viagens ao “Chile profundo”, encontra terreno fértil e a possibilidade de se desenvolver para além do resgate das tradições musicais dos povos indígenas, migrantes e negros diaspóricos. O Neofolclor, gênero que descende da Nueva Ola e as músicas folclóricas, com certa inclinação às músicas de protesto, estava em seu auge com bandas como Los Cuatro Cuartos lançando seus primeiros álbuns e se mantendo em primeiro nas paradas das rádios. Entretanto, o Neofolclor, ainda que culturalmente impactante, não foi capaz de atender os anseios culturais, políticos e sociais da sociedade chilena que ressoava com toda América Latina. Na época, fortemente impactadas pelo triunfo da Revolução Cubana em 1959, pela Guerra do Vietnã, pelas lutas de libertação nacional em toda África e no terceiro mundo e, posteriormente, pelo fracasso do governo democrata-cristão de Eduardo Frei Montalva, presidente de 1964 a 1970, marcado pelo Massacre de Puerto Montt, dentre outras transgressões e violações.


AS PEÑAS


No ano de 1965, Isabel e Ángel, filhos de Violeta Parra, criam, em conjunto com sua mãe, tio e outros artistas, a peña de los Parra, em um casarão na Rua Carmem, no centro de Santiago. Peñas eram espaços no qual se reuniam diversos artistas, cantores, compositores, poetas, instrumentistas, dentre outros, destinado à apresentações artísticas, de improviso e o compartilhamento de experiências e ideias, que no período eram frequentemente organizados por partidos, agremiações e organizações estudantis em torno de uma causa, ligado à cultura política de esquerda e de movimentos contestatórios. Na Peña de los Parra foi onde a Nueva Canción Chilena firmou suas raízes, reunindo artistas diversos artistas, como os poetas Nicanor Parra, irmão de Violeta, Pablo Neruda e os cantautores Victor Jara, Tito Fernandez, Gitano Rodriguez, o folclorista e compositor argentino Atahualpa Yupanqui, o artista cubano Carlos Puebla, dentre outros vários artistas, intelectuais, poetas, acadêmicos e militantes. Quatro anos depois, em 1969, se formava a coalizão entre partidos de esquerda Unidad Popular, com forte aderência da população mais pobre das cidades e dos campos e com a participação massiva dos artistas da Nueva Canción em suas campanhas, em comícios e eventos, com o grupo Quilapayún compondo a música ¡Venceremos!, tema da candidatura do futuro presidente Salvador Allende.


A peña dos Parras.


A Nueva Canción Chilena surge como resposta, continuidade e ruptura, da Nueva Ola e principalmente do Neofolclor, resgatando e reincorporando na música popular diversos elementos da música nativa e secular chilena, andina e latinoamericanas. As batidas em três tempos e a polirritmia trazidas pelo povo negro em diáspora, características também encontradas na influência árabe e andaluz, o canto em décimas dos payadores, os instrumentos de sopro dos povos indigenas andinos, o som das 25 cordas do guitarrón, tudo isso unido a necessidade de se expor abertamente os problemas sociais da época, a miséria, a exploração, a violência e a privação em um período em que se era praticamente impossível não falar da solidariedade latinoamericana e da luta internacional dos povos por liberdade, em vista das reivindicações populares e de um crescente movimento organizado, com envolvimento da grande parte dos artistas em movimentos comunistas e de esquerda. Este caráter contestador foi o que levou a Nueva Canción a ser desprezada pelas grandes gravadoras internacionais que monopolizavam a produção musical, entretanto as dificuldades não foram obstáculo para os artistas da Nueva Canción, que contavam com o apoio do locutor e radialista Ricardo Garcia, sendo este justamente quem batizou o estilo do conjunto Inti-Illimani e de Victor Jara como “Nueva Canción Chilena” em seus programas de rádio. Outro fator de extrema importância para o crescimento e a divulgação da Nueva Canción foram os imensos festivais, muitos deles organizados ou com a participação de Ricardo Garcia e de partidos de esquerda como a própria Unidad Popular, utilizando principalmente os espaços das universidades.


Nas palavras do reitor da Pontifícia Universidade Católica de Santiago, Fernando Castillo Velasco, em 1969: 


“Talvez a arte popular, a música popular, seja a forma de arte que melhor define a comunidade, mas ultimamente em nosso país nós estamos experienciando uma realidade que não é nossa. Nosso propósito no dia de hoje é buscar uma expressão que venha descrever essa nossa realidade. Quantos cantores estrangeiros chegam aqui, nos fazem dançar e nos deixam tão vazios quanto quando eles chegaram? Não é verdade que a rádio ou a televisão deem coragem aos nossos artistas para criar. É imprescindível estar preocupado que a nossa arte deva estar profundamente ancorada no espírito chileno, e o que nós cantamos, bem ou mal, deve expressar genuinamente a felicidade ou a tristeza, a alegria e a dor, mas que sejam nossas expressões.”


O grupo Quilapayún no primeiro Festival de La Nueva Cancion


O golpe de Pinochet, apoiado e financiado pelos Estados Unidos através da CIA, para além de um golpe contra o governo, a Unidad Popular e aos partidos de esquerda, em crescente no país, se mostrou também como um golpe contra a cultura popular, representante da autodeterminação do povo chileno, que foi e ainda é intimamente ligada à política, como bem definido por Fernando Castillo. As peñas foram perseguidas, artistas foram presos, exilados e mortos, desmantelando a Nueva Canción Chilena, que sofria com censuras, o que levou o radialista Ricardo Garcia a criar o selo musical Alerce em 1975 para reeditar e preservar as obras dos respectivos artistas, assim como continuar lançando outros artistas pelo agora chamado Canto Nuevo, descendente da Nueva Canción que tinha agora como princípio músicas de protesto contra a ditadura militar de Pinochet.


12 anos após o fim da ditadura de Pinochet, que nunca foi punido por seus crimes contra a humanidade, a banda de Santiago, Asamblea Internacional del Fuego lança seu primeiro EP, La Marcha de la Desesperanza.


A MARCHA DA DESESPERANÇA


Em março de 1990, de forma quase como a transição “lenta e gradual” proposta pela ditadura militar brasileira, com a adição do Plebiscito de 1988, que denota certo retorno da participação popular à política, chega ao fim o governo de Pinochet. Mas até que ponto, de fato, se chega ao fim? Se debatem pública e academicamente noções de uma “transição à democracia” desde a “derrota”  de Pinochet no plebiscito de 88 até, enfim, a eleição de Patricio Aylwin em 1989 e posteriormente, Eduardo Frei Ruiz-Tagle, filho de Eduardo Frei Montalva em 1993. Mas, até que ponto de fato, há avanço? Desde 1980, trechos da constituição se mantiveram intocados. A política chilena, independente de seu governante, continua a perpetuar o neoliberalismo rampante e contínuo. Neoliberalismo este que, inclusive, foi informalmente cunhado pelos Chicago Boys, grupo de economistas formados pela Universidade de Chicago que atuou no governo de Pinochet. As manifestações populares mantém suas bandeiras e suas reivindicações quase que intactas, desde antes de 1970, como no exemplo recente do Estallido Social, em 2019.


Inti-illimani performando durante um dos protestos de 2019.


Nestas condições que, dentre outras diversas bandas de punk, hardcore, post-hardcore, screamo/skramz, emotional hardcore, emo violence, etc, pelas mãos de uma juventude que, se não de fato viveu o final deste período ou suas consequências, se depara com o horizonte de desesperança deixado por ele social e culturalmente. Surge, dentre diversos outros nomes, a Asamblea Internacional del Fuego, uma banda que busca não somente representar seu estilo em específico no Chile, mas, nas palavras da própria banda, “busca pela memória não resolvida e resgata a obra autoral de [...] todos os expoentes do que chamamos de canto triste latino-americano.”.


“A nosotros la limitación. 

A nosotros el condicionamiento. 

A nosotros la ortopedia. 

A nosotros los golpes.

A nosotros la castración.”


Icaro Apología Al Vuelo, de Asamblea Internacional Del Fuego.


ISTO NÃO É HARDCORE, ISTO É MÚSICA DE COMBATE, NÃO SE ESQUEÇAM DISSO, COMPANHEIROS.


Poucos dias antes do início do Estallido, que se inicia como um protesto estudantil contra o aumento das taxas do metrô em Santiago e escala até a derrubada do presidente Sebastián Piñera, a Asamblea Internacional del Fuego se reunia para, à princípio, uma despedida. Em 18 de outubro de 2019, na aula magna da USACH, Universidade de Santiago do Chile, no mesmo auditório em que Víctor Jara tocou pela última vez antes de ser assassinado. Novamente, uma trilha sonora para a revolta da juventude, com uma nova sonoridade, mas remontando às mesmas pautas, às mesmas condições e ao resgate cultural, desta vez, da memória da pós-ditadura.


Bandas como Subir en Busca del Aire, Redencion 911, Esconder Micara, Leidan, Marcel Duchamp, Niño Symbol Ohhh!, Teoría de un Sueño Muerto, Una Temporada En El Infierno, Vlado Petrik, Cienfuegos, Nosotros La Miseria e mais especialmente Asamblea Internacional del Fuego e Tenemos Explosivos, soam quase como uma continuidade histórica e inevitável da Nueva Canción Chilena. Os paralelos que se desenham não ficam somente no campo das ideias, desde as temáticas compartilhadas à demografia, até os espaços de circulação, entre estudantes, jovens, universitários, à prática do DIY (Do It Yourself, faça-você-mesmo), distribuições e publicações independentes das bandas advindas do punk e do hardcore mas que, dado seu contexto de inserção em praticamente as mesmas convulsões sociais já vistas nas décadas passadas com a Nueva Canción, representam, desta vez certamente de forma um pouco mais nichada, os interesses da juventude inconformada, em vezes não necessariamente políticas, abordando desde suas questões individuais, suas carências, tristezas, felicidades, até suas bandeiras, reivindicações, debates, lutas e memória, principalmente memória. Memória daqueles que morreram, dos indigentes aos que hoje são homenageados, tal Víctor Jara. Do som extremo do underground à cultura nacional e andina, escamoteadas em relação ao mercado e mais recentemente, aos streamings. Nada impede a música de combate proposta por estes artistas de se manter ecoando nos fones de quem está nos frontes urbanos, nas ruas, nas casas de show, universidades e até mesmo em grandes festivais do Chile. 


Sinto que somos como convidados nessas coisas. Estamos com o amigo que está preso a um assunto [...], aquele amigo que briga com todo mundo quando o convidam para jantar. E nós somos aquele amigo, que nos convida e a gente grita as nossas coisas e fica com raiva e fala ‘o sistema é uma merda’. Mas é claro que acontece que muita gente nos acompanha, então, ok, vamos convidar o 'loquito'. Nós realmente vamos fazer um show ‘loquito’ onde quer que formos, temos feito isso todo esse tempo, que é o único show que temos. Nós somos os loucos da cidade. Estamos bem com este papel.


Eduardo Pavez, vocalista da Tenemos Explosivos em entrevista ao site Disonantes, sobre a presença da banda em grandes festivais como Lollapalooza e Knotfest.


Tenemos Explosivos ao vivo.


UM PÁSSARO QUE CORTA RUAS


Um pássaro corta as ruas, de Puerto Montt à Antofagasta, abre caminhos e escancara as feridas, essas que os causadores tentaram esconder, mas que de fato nunca foram cauterizadas. Da cidade ao campo, das ruas aos desertos, dos arranha-céus aos campamentos, um pássaro corta as ruas.

Cortacalles é o quarto álbum de estúdio da banda Tenemos Explosivos, produzido durante a pandemia e lançado em 2022. O nome Cortacalles faz referência a atos e protestos, esses, que literalmente cortam as ruas e param o trânsito. Como no lançamento anterior Victoria, de 2017, o álbum carrega forte mensagem política, relacionada a memória da ditadura e o desespero, dentre outros sentimentos que permeiam esse período obscuro da história do Chile e de toda a América Latina. Buscando não apenas comentar e repudiar, mas evocando as vozes das vítimas e de seus familiares, como na faixa 16, Así mataron a Mónica Benaroyo, que narra o assassinato da uruguaia Mónica Benaroyo, servidora pública presa em 14 de setembro de 1973 e desaparecida até 2008, quando seu corpo decaptado foi encontrado em um antigo campo de treinamento do exército.

O álbum traz uma mescla entre características da música folclórica, tradicional, em seus interlúdios e passagens lentas, emotivas, com acordes de piano marcados, como na primeira faixa El Barco de Teseo e na faixa-título, que soam quase como cantigas ou canções de ninar, passando por temas mais melódicos e introspectivos como Lautaro, la brigada, Aguacero e El fenómenos de la indiferencia del mundo até propriamente o hardcore, emotivo e carregado, com gritos e riffs cativantes nas faixas Ciudad abierta, Masacre de Laja e La bala humana. Letras que à partir de referências literárias e poéticas como poesias de Bertolt Brecht e conceitos da mitologia grega, criam imagens violentas do luto, do abandono, da pobreza, quase como um exercício de micro-história, partindo da individualidade das vítimas para pintar um retrato maior das brutalidades da ditadura militar de Pinochet e os sentimentos generalizados do período, assim como representar características da cultura regional e do folclore andino.

Segundo a própria banda: “Cortacalles faz tensão em duas direções: em sua pequena história, transmite a experiência pessoal de morte, luto e aqueles caminhos que se cortam sem aviso prévio; em grande escala, é uma crítica direta à pós-ditadura já que denuncia as mortes, lutos e os mitos que permanecem como ferida aberta de um país que fez de seu esquecimento sua principal política de Estado.”

Um pássaro corta as ruas e abre caminhos, gritando que a memória das vítimas e de seus familiares não serão apagadas.


La derrota sólo prueba que son pocos quienes luchan. 

Y los que miran son todos unos cobardes. 

Testigos llenos de miedo. 

O todos o ninguno, 

o fusiles o cadenas


MONTE ESTEPAR, por Tenemos Explosivos




 
 
 

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