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PAGODE BLACK-TIE: O MANIFESTO DE NEI LOPES

Atualizado: 27 de mai. de 2021


Texto de: Vitor Oliveira

Arte de: André Rebello

Revisão de: Tiele Kawarlevski


O pagode feito no Cacique de Ramos foi um marco revolucionário na música brasileira, simples assim. Por sua inovação nos instrumentos, pela influência que gerou em grupos de samba de todo o país, por ser uma manifestação muito autêntica do subúrbio carioca; enfim, pelas músicas espetaculares que tocam nas rodas de samba até hoje.


Nos últimos tempos, diversas produções culturais vêm valorizando de várias formas a geração do 'movimento do pagode' dos anos 80. Já fizemos um texto aqui sobre a iniciativa do Centro de Memória do Cacique de Ramos, que busca por meio da história oral, documentar toda aquela época. Acadêmicos publicam artigos e livros sobre o tema - e, claro, músicos de sucesso regravam e são influenciados por diversas canções daquele tempo, como o Vou Pro Sereno e o Galocantô. Mesmo assim, é um estilo musical que não recebe tanta atenção da crítica especializada, dos intelectuais, da elite cultural e da mídia, em comparação com outros mais 'sofisticados' como a bossa-nova e a MPB: nem de perto, Reinaldo, Almir e Zeca Pagodinho têm o 'perfil' de nomes como Gilberto Gil, Djavan e Milton Nascimento. Além disso, o fato de terem respaldo popular certamente influencia na má vontade e desconhecimento de muitas pessoas para com o gênero.


No clássico livro “Samba e Suas Fronteiras: Pagode Romântico e Samba de Raiz”, de Felipe Trotta, o autor ilustra a questão: “A música comunitária, dançante, rural, ocupa um patamar mais baixo do que aquela produzida por um autor-artista única, de fruição individualizada e estrutura complexa. Essa distinção possibilitaria, no decorrer da década de 1960, o surgimento da maior fonte de referência de qualidade da música popular brasileira, apelidada, sintomaticamente pela sigla de ‘a’ MPB.” (TROTTA, 2011, p. 108). A partir disso (e daquela pitadinha de racismo que está impregnada na elite cultural desse país), é possível entender o descaso que muitos gêneros musicais de origem popular sofreram ao longo do tempo. Com o pagode – seja o do Cacique ou o ‘paulista’, que explodiu na década de 90 – não foi diferente.


"Quando entrou na mídia o pagode do Fundo de Quintal, além de toda a novidade instrumental, rítmica, etc, eu percebi que eram melodias de excelência [...] e que eu precisava dessa valorização. Como é que seria essa valorização? Colocar essas melodias todas, essas obras todas num ambiente da música orquestral." Nei Lopes



No fim de 2020, Nei Lopes, em parceria com o maestro Guga Stroeter, Dino Baroni (responsável pelos arranjos), Jussara Sales e o Projeto Coisa Fina, lançou o disco-manifesto "Pagode Black-Tie". A ideia foi regravar algumas composições de pagode ao estilo das big bands, como forma de valorizar o movimento e reinterpretar suas melodias com uma roupagem mais… chique mesmo, de terno e gravata borboleta. Um "registro histórico" que aponta para os anos 80 e vê naquelas rodas de samba embaixo das Tamarineiras um movimento cultural digno de estudo, pesquisa e valorização. Como a coletânea “Samba de Raiz" do Revelação, que já falamos sobre, neste texto aqui. Nei Lopes é um intelectual orgânico (e, veja bem, não se trata de exagero conceitual) que, frente ao silêncio, desconhecimento e preconceito da elite cultural, de jornalistas e críticos em relação ao pagode do Fundo de Quintal, busca ressignificar e prestigiar os diversos compositores e intérpretes que, por vezes, caíram no ostracismo e esquecimento.


Vamos a algumas das músicas que mais gostei do projeto, claro: o álbum começa com "Água de Chuva no Mar" (Carlos Caetano/Wanderley Monteiro/Gerson Gomes), música imortalizada na voz da saudosa Beth Carvalho. No papel de crooner, Nei Lopes divide a canção com Adryana Ribeiro, que canta o refrão. Característica muito forte nessa música e que se repete em todas as canções é a presença dos metais. Foi uma experiência diferente ouvir "Conselho" (Adilson Bispo/Zé Roberto) sem o povo em volta batendo na palma da mão, mas ao invés disso, com um vibrafone. "Gamação Danada" (Neguinho da Beija Flor/Almir Guineto) surpreende pelo belíssimo piano jazzístico a partir da primeira estrofe da música e essa é uma música que vale a pena ouvir pelo menos duas versões anteriores: a com a primeira formação Fundo de Quintal e a do Revelação no Samba de Raiz. A irreverência da letra, típica das composições da época, é das melhores: "Gamação palavra que soa indelicada/ Mas é a única forma adequada/ Que justifica o meu penar" "Amar da maneira que amo não é mais amar/ Chorar da maneira que choro não é mais chorar" "(É Derramar) É derramar um arsenal de lágrimas/ E me sentir o mais infeliz dos mortais [...]".


Também são cantadas "Pago Pra Ver" (Nelson Rufino/Toninho Geraes), clássica na voz de Zeca Pagodinho, e o hino do samba, "O Show Tem que Continuar" (Sombrinha/Arlindo Cruz/Luiz Carlos da Vila) e "Mel Na Boca" (David Corrêa), com dueto de Carla Casarim. Acredito que a última música do projeto tenha sido escolhida a dedo. “Retrato Cantado de um Grande Amor” (Adilson Bispo/Zé Roberto), a belíssima canção que lançou o Príncipe do Pagode ao estrelato, diz em seu refrão o seguinte: "Pra finalizar/Resumindo essa História/Esse é o Retrato Cantado que Vem/Ratificar um Grande Amor". Nei Lopes e os músicos convidados trataram o pagode com muito carinho, neste que é um manifesto musical muito criativo, inventivo e ousado. Como tem que ser.


TROTTA, Felipe. O Samba e Suas Fronteiras: “pagode romântico” e “samba de raiz” nos anos 1990. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011, 304p.

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