Texto de: Luis Fernando Filho
Arte de: Victor Aguiar
Chegamos em 2021 e as nossas reflexões, especialmente de homens negros, seguem uma dicotomia entre o sonho (?) e a realidade. Mas, neste texto, eu quero refletir sobre nós que estamos nas periferias, nas favelas e nas ruas, sem muito tempo de sentir, refletir, e amassados pelo desemprego, a falta de tato com as possibilidades de um mundo melhor- imaginem, então, do direito do choro.
Eu sei, meus manos. Esses assuntos são difíceis, até porque fomos condicionados a suprimir tudo, inclusive entre nós, que sempre estivemos em comunidades tentando camuflar o ódio através da violência praticada ou sofrida. Eu já estive de ambos os lados.
Recentemente, uma entrevista me chamou atenção. Jay-Z, rapper norte-americano e hoje bilionário, falando abertamente ao jornalista Dean Baquet, do The New York Times, sobre o processo de reconstrução que vive. A época de menino, o cotidiano no bairro e a vida entre as drogas e a masculinidade a que sempre foi forjado. E aqui não vou usar teóricos sobre o assunto, até porque isso é um papo reto e real sobre o nosso direito de chorar. Repito.
E por que citar Jay-Z num debate sobre homens negros? Primeiramente, eu parto da minha perspectiva. De um homem hétero e totalmente influenciado pela cultura Hip-Hop desde o começo da minha vivência no bairro. E no contexto de Brasil, dificilmente quem veio debaixo não teve alguma influência do grupo Racionais, por exemplo, ou mesmo de outros nomes que narravam as dificuldades e a realidade do que é ser uma pessoa negra nesse país ou mundo à fora.
Irmão, nós da diáspora vivemos num eterno banzo à procura de uma saída pro vazio que sentimos.
O rapper estrangeiro foi uma escolha pessoal e não menos importante, muito pelo fato da necessidade de analisar a faixa ‘Song Cry’ gravada pelo norte-americano em 2001.
A “Música Triste” do Jay-Z e o choro não derramado
Para quem não sabe, o artista nasceu no bairro de Mercy, no Brooklyn, em Nova York, numa realidade comum a diversas outras comunidades afro-americanas dos Estados Unidos. Ou seja, seguindo as ordens de um sistema de sobrevivência aonde ‘homens negros não choram’.
Em outro momento, talvez eu discuta de forma ampla a influência do Jay-Z em alguns álbuns importantes pra história da cultura, mas hoje a Song Cry é o foco. Uma música que esteve no álbum The Blueprint (2001) e que, posteriormente, foi indicada ao Grammy de Melhor Performance de Rap Solo. Nada mal.
Essa canção é um lamento e um pedido de socorro do artista, algo pouco comum de ser explícito naquela época e num contexto em que os ‘atores’ do RAP utilizavam-se de uma linguagem, muitas vezes, misógina (sem tretas aqui, por favor).
“I can’t see ’em comin down my eyes Não consigo ver o que desce pelos meus olhos So I gotta make the song cry Então fiz essa música triste
Jay-Z trouxe nessa música um sentimento camuflado de todos nós e que, em resumo, era um pedido ao direito de chorar e se lamentar. É como se através da obra ele se forçasse ao choro dentro do que era permitido no sistema que os rappers daquela época vivenciavam.
Muitos de nós temos dificuldades de chorar, inclusive este cara que escreve o texto, e o que nos resta é despejar em linhas ou guardar nosso rancor em algum lugar sombrio do peito. É foda, mano, eu tô ligado como é que é.
E a nossa relação com o autocuidado e as mulheres negras?
Esse é um ponto interessante e que inevitavelmente entraremos no debate sobre masculinidades, mesmo que eu seja um pouco reducionista por aqui. Então vou direto ao ponto: não existe qualquer possibilidade de avançarmos nesse quesito sem assumirmos nossos erros e desconfortos. Sem trocar ideias entre nós.
Em Song Cry, Jay-Z narra basicamente o que foram os seus relacionamentos passados envolvendo as traições, as dificuldades de compreender as camadas de afeto e demonstrando como pode ser complexa a vivência de um jovem negro em ascensão.
“Eu entendo porque você quer o divórcio agora
Embora não possa deixar você saber, o meu orgulho não me deixa mostrar
Queria ser herói, era isso que eu queria quando criança
Mas por dentro o negro está tão doente
Não consigo ver o que desce pelos meus olhos
Então fiz essa música triste…”
Existe uma legião de irmãos, incluindo eu, com uma dificuldade tamanha de expressar as angústias, e sejamos honestos: poucos de nós temos a quem lamentar ou desabafar sobre esse cotidiano que nos joga todos os dias pra baixo, e alguns até pra vala. Isso aqui é Brasil, amigos.
Se o sistema que nos condiciona a diversas outras prioridades como sobreviver, ter comida na mesa e estar sempre na reserva de mercado- distribuídos entre os trampos mais defasados e menos remunerados- como é que vamos refletir sobre avançarmos em nossas trocas afetivas?
“O fardo da pobreza não é apenas não ter sempre aquilo que precisa, é a sensação de estar envergonhado todos os dias da tua vida. Claro que você faz tudo o que pode para livrar-se desse fardo. Quando éramos crianças não nos queixávamos de sermos pobres; falávamos do quão ricos nos tornaríamos e nos movíamos de modo a ter o estilo de vida a que aspirávamos. E assim que tínhamos algum dinheiro, mesmo que poucos, desejávamos ardentemente mostrá-lo”, escreveu o rapper em "Decoded" em seu livro de memórias publicado em 2010.
A nossa relação com a grana sempre foi um tanto problemática e ilusória. Nós sempre desejamos aquilo que mal conhecemos, e isso sempre foi a camada mais vazia e também concreta quando falamos de sonhos e objetivos. Perceba: isso tudo ainda é estranho de refletir. Nos sentimos culpados de quase tudo o tempo inteiro. Sempre nos blindamos em alguma letra de Rap dos anos 90.
Talvez, o importante seja a noção do nosso papel também na vida das mulheres negras. São elas que nos entenderão e que são a força motriz da criação, do afeto que nos transcenderá enquanto homens negros mais sensíveis ao amor e às demais sensibilidades. Seja a sua mãe, tia, amiga ou namorada. E isso será possível apenas se, repito, estejamos dispostos ao desconforto. A levar em consideração os pontos de vistas delas, verdadeiramente.
Mais do que isso, também acredito que não devemos cair na idealização de que nós não possamos errar, porque o erro e contradição são condições demasiadamente humanas. Em Song Cry, Jaz-Z admite os erros e como sabemos, seguiu errando inclusive com sua atual esposa, a cantora Pop Beyoncé.
Em “Lemonade” (2016), o sexto álbum de estúdio assinado pela cantora, a obra relata basicamente as dores e desconfortos de Beyoncé, a principal vítima das traições e erros cometidos pelo rapper. É um trabalho que merece nossa atenção e que não irei me aprofundar aqui, porque requer um espaço maior de reflexão noutro momento.
Durante a entrevista ao The New York Times, Jay-Z deixa explícito o desconforto com os erros do passado e a tentativa de retomada do casamento com a cantora pop. E, ao meu ver, o resultado artístico entregue por Beyoncé é um estudo de caso sobre o que desejamos ou não em nossas relações.
Se você chegou até esse momento do texto, parabéns. É sinal de que há interesse no debate. Pois então, irmão, quais são nossas prioridades em nossas comunidades? Qual a nossa relação com as mulheres negras, além do prazer sexual? Papo reto.
Muitas vezes, o que nos restou foi a linguagem do Hip-Hop, e a partir dela nos confrontamos com o racismo e a violência. Foi nossa principal arma nos guetos. E agora, que tal nós avançarmos na camada do afeto?
Sem essa ideia eurocêntrica, clichê e elitista que muitos irmãos pretos também acabam reproduzindo nas redes sociais.
Eu tenho fé que ainda iremos superar a fase da Música Triste do Jay-Z. Demos o nosso primeiro passo, hoje.
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