Texto por: Vitor Oliveira
Arte por: André Rebello
Revisão por: Tiele Kawarlevski
Desde a apresentação no canal Versuz TV em fevereiro de 2021, tenho pensado que tudo o que precisamos é um álbum novo de D’Angelo. Parece que vai acontecer em breve, mas o que esperar, então, do lançamento de um artista que, mesmo com a discografia curta (são apenas três álbuns em um espaço de 26 anos), passeou por tantos gêneros, texturas e abordagens? Um cara de personalidade tão reclusa, que não dá nenhuma pista sobre o processo de gravação, criação, datas… nada. No decorrer deste artigo, veremos que D’Angelo sempre trabalhou no silêncio e que seus álbuns sempre demandaram tempo para serem lançados ao público.
Michael Eugene Archer, o D’Angelo, nasceu no dia 11 de fevereiro de 1974, em Richmond, Virgínia. Filho de pastor pentecostal – e a ligação de infância com a igreja o conecta a outros grandes nomes da música negra estadunidense, como Marvin Gaye, James Brown, etc. –, foi flagrado pelo irmão tocando piano quando tinha apenas 3 anos de idade. Aos 5, aprendeu a tocar “nota por nota” todas as músicas do álbum “Prince” (1979). Contou em entrevista que sempre lia as fichas técnicas dos discos e percebeu que Prince sempre era creditado em todos os instrumentos. Quis ser assim. E quase assim foi seu primeiro álbum, “Brown Sugar”.
A Tribe Called Quest Meets Prince & Al Green
“Brown Sugar”, álbum de estreia de D’Angelo, é o disco em que ele é mais creditado. As músicas foram compostas e escritas por ele quando ainda era um adolescente em seu quarto em Richmond, mas o lançamento aconteceu apenas em 1995. Artista de seu tempo, além de Al Green, D’Angelo foi influenciado pelos caras do Native Tongues e do Main Source. Por essa razão, esse álbum tem uma sonoridade nova-iorquina mais esfumaçada, jazzística e com influências claras do rap. Como se Prince e Marvin Gaye tivessem encontrado o A Tribe Called Quest.
A referência ao Tribe não é apenas coincidência: foi Bob Power, engenheiro de som e colaborador do grupo, quem fez a mixagem e/ou produziu a maioria das músicas do disco, como “Smooth”, na qual o piano jazzístico de D’Angelo se funde à bateria de som granulado e às diversas vozes que ele pode performar; e “Higher”, de inspiração simultaneamente cristã e secular: a letra, de duplo sentido, trabalha a metáfora entre o amor de Deus e o Sexo. O destaque dado ao órgão e as tradicionais vozes de D’Angelo fazem dessa música um amálgama entre duas das maiores influências de infância do artista: Prince e a música gospel.
Foi a faixa-título, primeira música do álbum, a que estourou. O beat e a linha de baixo grave e “dronada” lembram “Halftime”, lançada um ano antes por Nas e produzida por Large Professor. D’Angelo navega suavemente pela música, versando suas metáforas sobre haxixe e maconha – que lhe rendeu a atenção e a simpatia de Redman e DJ Premier, futuros colaboradores seus –, fazendo o trabalho de coro e ad-libs (todas as vozes foram creditadas em seu nome) e arriscando solos no órgão.
O álbum chamou atenção da crítica de maneira muito positiva. Nos anos seguintes, diversos trabalhos que surgiram com sonoridade e principalmente com abordagem semelhantes, seriam cunhados como neo-soul. Neste movimento, no qual se incluíram Maxwell, Jill Scott e Erykah Badu, Brown Sugar aparecia como álbum precursor: D’Angelo tinha apenas 21 anos de idade na data de lançamento. Analisando sua discografia, com certeza foi seu álbum mais ligado ao hip-hop, musical e esteticamente. Depois da tour de promoção do disco, D’Angelo sofreu de um bloqueio criativo para compor seu novo trabalho, mas as coisas começaram a se iluminar no Electric Lady Studios.
Voodoo: um conjunto virtuoso
Em 2000, chegaria seu segundo álbum, “Voodoo”. Diferentemente de Brown Sugar, porém, Voodoo teve um espírito mais colaborativo, com artistas virtuosos em seus ofícios, ao invés de um grande esforço individual, como no primeiro disco. Nesse sentido, D’Angelo demonstrou grande capacidade de “orquestrar” o projeto, qualidade que nos faz pensar nos grandes, de Mingus e Davis a Kanye. Questlove, Russell Elevado, Pino Palladino, DJ Premier, Charlie Hunter, Raphael Saadiq, James Poyser e Roy Hargrove foram músicos de destaque que participaram nas músicas do álbum, sem contar na grande influência de J Dilla no que diz respeito às linhas de bateria. Acredito que os três primeiros formam a espinha dorsal do disco.
A reação de Ahmir Khalib Thompson (Questlove) ao ouvir Brown Sugar foi uma revelação: “Ele é o nosso salvador”, pensou. É verdade: ele havia recusado o trampo em Brown Sugar porque nada no R&B da época o movia como Otis Redding, Stevie Wonder e Lou Rawls. Porém, depois de tomar conhecimento, buscou a oportunidade de conhecer D’Angelo. Foi no Soul Train Awards de 1996: durante a apresentação do The Roots, ao perceber a presença de D’Angelo, começou a tocar a bateria de um jeito irregular e não muito usual (como em “Me And My Dreamin’ Eyes of Mine”). Não deu tão certo. Tentou de outra maneira: tocou a intro de “4” do MadHouse, projeto de jazz fusion do Prince. D’Angelo captou a mensagem e a partir daquele dia viraram parceiros.
Questlove conta que, durante as tours do The Roots pelo mundo afora, ele gastava toda a grana em fitas antigas e raras de shows ao vivo de caras como James Brown, Al Green, Marvin Gaye, etc. Quando a agenda tinha uma folga, ele ia pro Electric Lady (estúdio construído por Jimi Hendrix, onde Stevie Wonder quis ir pra soar “o mais esquisito possível”) com D’Angelo para assistir, anotar e discutir o que viram: dinâmica da banda, vocais, tudo. E só depois de assistir todo o material é que começavam a tirar um som. E foi assim que o álbum foi construído: de maneira lenta, a partir de longas e informais jam sessions no Electric Lady. Foram gravadas simplesmente 72 horas de material!
É que D’Angelo também estava irritado com os rumos que o rap e o R&B mainstream estavam tomando a partir da segunda metade da década de 90. Enxergou uma ruptura negativa entre o que os antigos faziam e o que estava sendo feito naquela época, seja em termos de letra, mixagem, gravação ou de abordagem. A escolha do Electric Lady tem a ver com isso: lá, ele conseguiria um som mais natural, orgânico e ligado às tradições – seculares ou não – às quais era afeito. Dessa forma, o disco funciona também ora como homenagem, ora como manifesto, ainda que boa parte das letras abordem aspectos de sua vida pessoal.
A Questlove e D’Angelo se juntou o baixista galês Pino Palladino. D’Angelo estava a procura de seu próprio James Jameson e achou: Pino estava no Electric Lady para gravar um disco do B.B King, foi ali que eles se conheceram. D’Angelo se impressionou com a capacidade do galês de tocar várias músicas da Motown só de cabeça.
Outra grande parceria de D’Angelo em Voodoo é o engenheiro de som Russell Elevado. Eles se conheceram quando Brown Sugar estava sendo finalizado e D’Angelo precisava de um novo engenheiro de som. 7 faixas já haviam sido finalizadas, mas deu tempo de Russell mixar três: “Jonz in My Bonz”; “When We Get By” e “Lady”. Começaram a trocar ideia sobre música: Russell era mais ligado ao rock e apresentou a D’Angelo Jimi Hendrix, Led Zeppelin e Beatles.
Russell teve a ideia de que o álbum fosse gravado inteiramente de maneira analógica, como faziam os antigos. A ideia era mesclar as possibilidades tecnológicas da época com práticas antigas de gravação, mixagem e masterização, para se alcançar um som mais fiel. D’Angelo ficou um pouco insatisfeito com a "homogeneização" das músicas do Brown Sugar e queria que tudo soasse como uma demo. Da vaca, pro copo.
Vamos a algumas músicas: “Playa Playa” começa com a gravação de um ritual religioso e logo se transforma num funk meio pegajoso, numa letra com altas referências ao basquete, já que, à época, ele estava envolvido na composição da trilha sonora do primeiro Space Jam; “Devil’s Pie”, produzida por DJ Premier, funciona como um gospel blues, no qual a letra denuncia os males do materialismo na cultura do hip-hop.
A parte “virtuosa” do disco, segundo Questlove é composta por “Greatdayndamornin’/Booty”, “Spanish Joint” e “The Root”. Charlie Hunter, além de tocar guitarra nas três músicas, tocou o baixo também, ao mesmo tempo, numa guitarra de oito cordas. Todas as três músicas são longas e os músicos improvisam bastante, com destaque para Pino, em Greatday. Spanish Joint é, talvez, a música que mais chama atenção no álbum, já que é influenciada, como o título já diz, pela música latina, com vários bongos e Hargrove atacando de Dizzy Gillespie.
Algumas músicas claramente foram construídas em cima dos covers que eles faziam no estúdio. “Send it On”, música feita em homenagem ao nascimento de seu primeiro filho, foi construída em cima de “Sea of Tranquility”, do Kool & The Gang. “Chicken Grease”, em cima de Mother’s Son de Curtis Mayfield (Tic-Tac ainda é 9 e 40…). “Feel Like Makin’ Love” é um cover da música de mesmo nome de Roberta Flack.
Lançado em 25 de Janeiro de 2000, Voodoo inaugurou o novo milênio de costas pro futuro. Era um álbum da década de 70. Os discos posteriores dos integrantes do Soulquarians tinham uma sonoridade semelhante (a espinha dorsal de todos continuou sendo Pino, Russell e Questlove), mas olhando hoje, 21 anos depois, não se vê muito de Voodoo: os diversos softwares de produção musical tomaram o espaço dos estúdios – o que para a ortodoxia analógica de Russell e D’Angelo é uma tragédia – e o R&B foi influenciado pelo indie e pelo lo-fi, agora cheio de white-noises e com uma sonoridade mais “de quarto”. Ainda assim, aclamado mundialmente, D’Angelo possui admiradores devotos, de John Mayer e Rick Rubin a Beyoncé.
“Untitled (How does It Feel)” foi o grande sucesso do álbum. Homenagem a Prince (pense em… Do Me Baby, Adore, ou mesmo On The Couch, que é inspirada em Untitled), a música lenta, groovy e sensual transformou D’Angelo numa estrela. Não só pela música: o clipe, chocante para a época, trazia o cantor totalmente malhado, com a pele brilhando e nu. Era apenas ele e um fundo preto. Não parecia nem mesmo que tinha apenas 1,68m de altura e, claro, era totalmente diferente da imagem de D’Angelo em Brown Sugar: um jovem de roupas largas atrás de um piano. De repente, um cara totalmente tímido e recluso havia se transformado num sex symbol.
Porém, este foi o início de um longo hiato de 14 anos em sua carreira. Durante a tour de promoção do disco, os gritos de “tira a roupa” que vinham da plateia o irritavam, pois para ele, as pessoas não estavam ali valorizando sua música. A mãe de seu primeiro filho, Angie Stone, sofria “body-shaming” por – segundo a mídia e pessoas próximas – não estar "à altura" do corpo dele. A turnê foi marcada por diversos momentos em que ele se sentia inseguro de não conseguir entregar fisicamente o que as pessoas pediam e, terminada a turnê, um amigo dele cometeu suicídio. Ao longo dos anos, D’Angelo foi desenvolvendo dependência química e problemas com álcool, e o medo de morrer como Jimi ou Marvin o acossava constantemente. A isso se somaram trocas de gravadoras e conflitos de agendas, e um próximo álbum parecia bem distante.
Black Messiah: um retorno pontual
No dia 17 de julho de 2014 em Nova Iorque, Eric Garner, acusado de vender cigarros ilegais, foi brutalmente assassinado pela polícia com um mata-leão à luz do dia. Um mês depois, no dia 9 de agosto, Michael Brown, desarmado e sem antecedentes criminais foi também assassinado, desta vez, em Ferguson, no Missouri. Dias depois, a cidade foi tomada por protestos violentos e que se estenderam por bastante tempo. No dia 4 de dezembro do mesmo ano, o júri popular de NY decidiu não indiciar o policial assassino de Gardner e uma nova onda de protestos se espalhou pelos Estados Unidos. 11 dias depois, apressado pelas circunstâncias, Black Messiah foi lançado.
D’Angelo enfatizou que a temática política do álbum não se tratava apenas do que acontecia nos protestos das violências policiais: o início da década foi marcado por protestos no mundo todo, do Egito aos 20 centavos no Brasil – apesar dos desdobramentos que todos nós conhecemos. Ainda nos Estados Unidos, o movimento Occupy Wall Street questionava o poder e a influência do capital financeiro num cenário de devastação pós crise de 2008. O Messias Negro do título não se tratava de sua volta à música ou mesmo de algum líder político, mas sim do povo nas ruas. A capa ilustrou muito bem essa intenção.
Instrumentalmente, Black Messiah é o único álbum de D’Angelo que não possui influência do rap. Acredito que seja seu álbum mais “rockeiro”, embora as influências mais óbvias sejam de “There is a Riot Going’ On” e “On The Corner”. Tematicamente, entre o afago e a revolta, é de fato seu álbum mais político – e não surpreende que na promoção de lançamento ele tenha feito um vídeo trocando ideia com Bobby Seale, comunista e um dos fundadores dos Panteras Negras. Ainda assim, há canções sobre amor ou sobre aspectos de sua vida pessoal: “Back To The Future” é uma reflexão sobre os 14 anos de sua luta contra o vício em drogas e as dificuldades em ser famoso e hiperssexualizado.
De todo modo, D’Angelo não era mais um jovem musculoso e sex symbol. As regatas da tour de Voodoo foram substituídas por roupas mais pesadas; passou a usar um chapéu de cowboy e sua voz obviamente não era mais a mesma. Nos shows, passou a tocar mais guitarra e há quem especule que essa decisão tenha a ver com o fato de que a guitarra “esconde” o seu corpo, o que faria com que as pessoas prestassem mais atenção em suas músicas, embora ele tenha dito que queria tocar mais guitarra em seus trabalhos, pois em seus dois primeiros álbuns, ele tocava o piano de uma maneira a “emular” a guitarra.
O lado político do álbum conta com “1000 Deaths” – concebida em 2008, veja só –, uma bagunça instrumental funky iniciada com discursos de Khalid Abdul Muhammad e Fred Hampton. “The Charade” (destaque para a linha de baixo de Pino Palladino) se desenvolve como uma marcha e a letra questiona a tal democracia americana; e “Till It’s Done (Tutu)” aborda questões como a destruição da natureza. Em todas as músicas os vocais de D’Angelo estão muito distorcidos e soam mais incompreensíveis do que nunca.
Como em todos os seus álbuns, vários momentos instrumentais são de brilhar os olhos: o que dizer da groovy “Sugah Daddy”? James Gadson, o baterista da música, criou a melodia batendo as palmas da mão no próprio corpo e estava sendo gravado sem perceber. A faixa também conta com a participação do saudoso Roy Hargrove. Em “Betray My Heart”, a sonoridade calorosa construída pelo baixo de Pino e pelo trompete de Hargrove atinge um clímax espetacular, no qual D’Angelo, como sempre, entrega belíssimos ad-libs.
E 7 anos depois, mais uma vez, D’Angelo sumiu e não lançou mais nada. Nesse tempo, de Black Messiah pra cá, assistimos a mais mortes violentas de pessoas negras nos EUA – e novamente a mais protestos –, a cooptação de pautas raciais pelo liberalismo, a reabilitação do colonialismo na África e no Oriente Médio… a lista é infinita. Sobre a vida de D’Angelo ou a produção de um novo álbum, zero. Durante o hiato de 14 anos, Elevado e Questlove ao menos saíam na mídia para dar pistas sobre o novo álbum, fazer um hype e tal. Mas hoje em dia, nada. Não dá nem pra especular em que direção sua obra vai seguir: se voltará a fazer algo mais próximo ao hip-hop, se vai fazer um álbum country (como o single “Unshaken” lançado para Red Dead Redemption 2, franquia em que D’Angelo é viciado), se vai ser algo mais funky, se vai largar a ortodoxia analógica… não dá pra saber. O que nos resta é esperar pela sua quarta vinda.
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