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FREESTYLE ARGENTINO: O SONHO DEL PIBE DO TREM

Texto de: Marinah Nogueira Arte de: André Rebello Fotografia de: Lissa Pegoretti Quando cheguei em Buenos Aires, a minha percepção sobre a cultura era inteiramente atrelada à imagem que me venderam da capital argentina: prédios históricos, forte colonização italiana e culinária invejável. A quebra dessa imagem não tardou muito em vir. Depois de alguns meses, percebi todos esses aspectos. Mas, quando se vive a cidade, é possível analisar toda sua complexidade. Um certo dia, me deparei com um menino, creio que não chegava a ter nem 12 anos, tirando umas notas de freestyle no trem indo pra região periférica do conurbano em direção a Lomas de Zamora. Ele falava sobre a própria vida, sua família, falta de dinheiro e o amor que tinha por rapear . Não cheguei nele, não quis invadir o horário de trabalho (vi que ganhava alguns trocados com isso). Se escrevo hoje sobre isso, é por conta desse guri. Sua verdade me tocou. O Rap tem sua origem na Jamaica, nos anos 60. Nasceu como forma de protesto contra a violência sofrida nas favelas de Kingston. Por conta de uma crise econômica, bem no início dos anos 70, muitos jamaicanos migraram para os EUA. A história começa quando esses imigrantes, que foram morar nos chamados guetos, introduziram à cultura estadunidense um dos maiores ritmos musicais do mundo. Talvez, o cenário argentino seja um pouco diferente, mas ainda se percebe semelhanças significativas, uma vez que algumas villas da capital argentina têm um número considerável de imigrantes. Peruanos, bolivianos e paraguaios formam boa parte da periferia bonaerense * . E são esses mesmos pibes de barrio ** que muitas vezes representam a cultura e vão às competições todas as semanas, esperando por seu momento. * Bonaerense significa que é natural de Buenos Aires ** Guri de vila, vileiro etc Segundo dados do Spotify , em 2019, o trap, subgênero do rap, foi o ritmo musical mais escutado na Argentina. O rap chegou às terras argentinas no começo dos anos 90, com artistas como Illya Kuryaki & The Valderramas , fazendo uma mescla de rock nacional e hip hop. Porém, foi a partir de 2013/2014 que as batalhas de rap ficaram cada vez mais famosas no país. A influência veio das batallas de gallos do campeonato Red Bull, maior festival de freestyle, desde 2005, de países de fala hispânica. As batalhas de freestyle são o subgênero do Rap mais popular na Argentina, tendo como ponto principal ganhar do(s) oponente(s) com rimas improvisadas. Encontrei a MkUltra , competição organizada por Memi , que acontece a cada 15 dias em praças e parques da capital portenha. Conta com a presença de diversos participantes numa faixa etária entre 12 e 22 anos (e curiosos de idades variadas). Entre garrafas pets cortadas pela metade, cheias de fernet e coca-cola, fumaça de erva, "tiradas de rimas" e beats de rap, vi a cultura se desentrelaçar diante de mim. Consegui ver o nervosismo e aflição de cada participante antes da competição, improvisando ou rimando, junto de um grupo ou sozinho num canto. Entre esse emaranhado de vozes, cheiros e beats, conversei com Kobein , 19 anos, criado e nascido no bairro de San Telmo, coração histórico de Buenos Aires. Seu interesse por rap veio da mãe, que sempre escutou o ritmo. A maior influência que tem é do rapper estadunidense Tupac e do argentino Acru . Confessa que seu maior sonho é poder viver da música e conseguir comprar uma casa para sua mãe. “Para mim, o freestyle é um estilo de vida. Porque eu acordo tirando free, tomo banho tirando free, cozinho tirando free. Quando eu me sinto mal, eu improviso, escrevo. O freestyle te tira dos problemas. Tipo eu começo a improvisar, a escrever e deixo de pensar em todos os problemas que tenho. É tipo uma saída, que não é se drogar, pra poder se isolar do mundo” Kobein não é exceção. Ele é regra. Muitos jovens de periferia e de classe média vão às batalhas de freestyle como uma saída das drogas, dos problemas e de si. É um modo de ser notado e respeitado. Um sonho a ser conquistado a cada rima que é improvisada, tal qual suas próprias vidas. Fiquei uma tarde inteira escutando esses meninos. Falavam sobre o que pensam, o que odeiam, o que gostam e quem são. A verdade é que os sentimentos surgem junto à mistura de palavras e fôlego que tomam a todo improviso. E eles improvisam. Não somente nos versos, mas na vida. Falam da fome, da intimidade com a morte, da ressurreição, da desigualdade. Se ofendem, se putean (xingam), se respeitam, não se escondem e se abraçam. O campeonato nacional de freestyle argentino é o Freestyle Master Series (FMS), competição oriunda da batalha mais famosa do país, El Quinto Escalón . Foi dessa compe (competição) que surgiram os nomes dos rappers mais famosos do país, que se tornaram referências musicais no mundo do rap hispanofalante. São eles: Trueno , Wos , Dtoke , Sony , Klan , Wolf , entre outros mais. No freestyle argentino, há sempre jurados e são eles os únicos a escolher quem ganha ou não. A não ser que quem seja apontado como vencedor dê de “brinde” ao oponente a batalha; diferentemente das batalhas brasileiras, em que todos que estão acompanhando, votam. O público feminino é inferior ao masculino. Percebe-se tanto nas “arquibancadas” quanto nas competidoras. No dia que fui, Tamara , 30 anos, que estava na lista da batalha, parecia tranquila. Aliás, faz 10 anos que ela rapea . “A igualdade é a grande dificuldade. Que te respeitem, que te escutem isso é a dificuldade. No freestyle feminino, esperam outra coisa, não esperam que você seja boa. Chama a atenção só por ser mulher.(...) Me aconteceu de ir a várias competições, de eu cair com um oponente homem e ele me fazer cara feia ou rapear sem vontade. Tudo porque sou mulher.” Tamara é conhecida como Real Zee One e já viajou a outros lugares do país para competir, mas teve que parar. A constância foi diminuindo por conta do trabalho e da filha que teve aos 23 anos , mas ainda vai às batalhas como hobbie. Ela também confessa que o rap é uma religião e que se alguém quiser procurar para se desafogar emocionalmente, pode contar como apoio. O freestyle é uma manifestação cultural criada e moldada pela rua e pelas pessoas que a vivem. É liberdade, religião, força e êxtase. Na Argentina, não é diferente. A cada verso que vivi e rima que desfrutei, vi o menino do trem. Talvez, se não fosse por ele, nem teria me interessado pelo tema. Consegui encontrar uma nova admiração e resolvi passá-la adiante. Espero que esse guri, que me improvisou sua verdade, possa encontrar a minha escrita nessa reportagem um dia. Mais fotos de Lissa Pegoretti:

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