Texto publicado originalmente em: “Além das Cordas”
Deus fez o mar, as árvore, as criança, o amor
O homem me deu a favela, o crack, a trairagem, as arma, as bebida, as puta
Eu? eu tenho uma bíblia véia, uma pistola automática e um sentimento de revolta.
Eu tô tentando sobreviver no inferno...
Na década de 1990, a cidade de São Paulo era considerada uma das mais violentas do mundo. A cada hora morria um paulistano assassinado. Estatísticas chegavam a registrar mais de 4400 mortes num único semestre, cerca de 750 por mês. As crianças integravam o lado mais agravante desse quadro.
Nessa época, a TV Gazeta realizava um mini-documentário em que o repórter Wagner Donizeti Lima (famoso pelas inúmeras matérias sobre a violência das torcidas organizadas na década de 1990) mostrava um dos bairros mais perigosos da Zona Sul, o Jardim Santo Eduardo, local onde a maioria das chacinas de São Paulo eram registradas. No meio da violência, das drogas e da criminalidade, havia esperança através do esporte e, nesse cotidiano violento, veneno 100%, vivia Sérgio Luciano Adguy de Oliveira, o “Jofrinho Fúria Negra”.
Trajetória
Nascido em 2 de março de 1970, no Jardim Castro Alves, Grajaú, e criado no Jardim Santo Eduardo, no Embu, Jofrinho começou a lutar cedo. Aos 7 anos de idade, trabalhava na feira e engraxava sapatos para ajudar em casa, já mostrando talento nas rodas de capoeira. Aos 9, dava aulas. Na década de 1980, já era tri-campeão paulista e penta-campeão brasileiro na modalidade. Nessa etapa de vida, tornava-se cada vez mais engajado em projetos sociais voltados para a comunidade. Enquanto treinava as crianças, também palestrava sobre a importância da valorização do povo preto e dos efeitos e consequências causadas pelo uso de drogas.
Da zona sul para a Europa
Aos 18 anos decide servir o exército, com essa idade já estava mais envolvido com o boxe do que com a capoeira. Ao deixar o quartel, começou a disputar lutas amadoras. Em 1993, com o apoio do ex-pugilista super-campeão, amigo pessoal e vereador de São Paulo, Eder Jofre, Luciano viajou para a Itália, onde disputou um torneio do tipo Vale-Tudo, intitulado “Golden Dragon”, representando a capoeira e o boxe brasileiro. Após ter eliminado americanos, russos e suíços no torneio, foi derrotado somente na final por um italiano. A demonstração do talento de Jofrinho na competição foi o suficiente para garanti-lo por mais uma temporada inteira de lutas na Itália, tempo que se estendeu por mais três anos em terras europeias.
Voltou para o Brasil em meados de 1996, pois sentia que tinha assuntos para resolver no lugar em que nasceu. Aqui, despontaria como um dos melhores do mundo, ao mesmo tempo em que era personal trainer de seu amigo de adolescência Mano Brown.
Sua rotina de treinos durava quatro horas diárias, dividindo os exercícios entre o começo da manhã e os finais de tarde — pela manhã corria de 6 a 15 km, 40 minutos eram focados somente em alongamentos e musculação; durante as tardes, fazia alguns minutos de “sombra” (simulação de combate, sem uso de sparrings), treinava 20 minutos no saco de areia e exercitava a cintura por 30 minutos, finalizava os treinos pulando cordas, fazendo abdominais, relaxamentos e alongamentos. Brown seguia a mesma cartilha, diminuindo a carga em 50%.
Em 1998 os Racionais MC’s assinaram contrato com o atleta, que começava a carregar no nome o aposto “Fúria Negra”. Com base na performance de Jofrinho, na receptividade do público e no retorno midiático, eram definidos os termos de um contrato de patrocínio oficial. Além de um salário de R$ 1.500 mensais (ano em que o salário minimo médio era de R$ 130,00), os Racionais também ajudavam na organização dos combates de Jofrinho. Os cantores cobriam as despesas com o pagamento das bolsas e os custos com a promoção e a montagem do ringue.
“Fizemos um trato há uns dez anos, quando ninguém era famoso ainda. Sempre brincávamos, um dizendo que alcançaria a fama primeiro. Então, combinamos que quem alcançasse o sucesso primeiro ajudaria o outro”, conta Brown a uma reportagem da Folha de S. Paulo, que foi ao ar em 18 de dezembro de 1998.
No mesmo ano, Jofrinho participou de uma luta de abertura do show que comemorava o disco de platina do álbum “Sobrevivendo no Inferno” . No ano seguinte os Racionais retribuíram a gentileza, se apresentando no embate em que Jofrinho colocava em jogo seu cinturão da Federação Internacional de Boxe (FIB).
O atleta, que tinha Eder Jofre como inspiração, lutou nos meios médios, nos médios ligeiros, nos médios e super médios. Foi campeão de boxe de todas as Américas e lutou duas vezes pelo título do mundo Hispânico.
Dois anos sem a lenda
Jofrinho encerraria seu legado em vida no dia 17 de outubro de 2017, aos 47 anos de idade, após um acidente de carro. O atleta enfrentava problemas renais e sua morte foi confirmada através da rede social Facebook, por pessoas próximas do atleta, e comentada no “Programa do Baldo” pelo apresentador e jornalista Wilson Baldini Jr.
Seu legado está marcado na história da zona sul de São Paulo, lugar onde sonhava em mudar as estatísticas da periferia. Fez parte da trajetória da “Família Racionais” e, em conjunto com Mano Brown, tocava o projeto “Reação Brasil 2000”, em que financiavam uma escolinha de futebol na Cohab Adventista, no Capão Redondo. No Jardim Santo Eduardo, era responsável por uma escolinha de basquete e atletismo, enquanto no Jardim Ângela administrava uma pequena academia de boxe. Jofrinho tinha Eder Jofre como amigo pessoal e teve papel importante na aproximação do boxe profissional com o Rap, feito que pode ser comparado com o pugilista americano Roy Jones Jr.
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