Uma questão cara aos movimentos negros é a relação entre academia e periferias. Quando a fala parte da primeira sobre segunda, o risco de que o diálogo seja assimétrico e esconda relações de poder é enorme. Os discursos não se transformam apenas via representatividade liberal: a presença de um corpo negro e um título que aponte para sua pretensa decolonialidade não quebra o ranço branco, paternalista e catequético que o formato da produção acadêmica continua a carregar. É uma questão do limite da flexibilização da função social de um tipo de linguagem – no fundo ela sempre hierarquiza –. A pergunta não é sobre como fazer nossas discussões alcançarem às favelas, mas sim se elas interessam às favelas. O resultado dessas duas concepções expõe duas noções de sujeito diferente: a primeira é dos periféricos como tábula rasa e a segunda enxerga essas pessoas como sujeitos pensantes que avaliam, interpretam e dão sentido às suas próprias situações e experiências.
Texto de: Leandro Soares
Nesse sentido, como os discursos sobre raça e anticapitalismo emergem das periferias urbanas? Se a questão é pensar a partir de uma ótica anticolonial, nada é mais efetivo do que olhar para as produções artísticas das próprias favelas.
A geógrafa de formação Iara Félix Viana, em sua dissertação de mestrado em estudos do lazer defendida na UFMG e intitulada “Mulheres Negras e Baile Funk: sexualidade, violência e lazer” (2013), desenvolve uma perspectiva bem dissonante da visão ortodoxa em relação à participação das mulheres e meninas nos bailes, deslocando o conceito de lazer de sua matriz masculina e branca. Seu texto bate de frente com a noção de que o lazer, após a industrialização no século XIX, torna-se espaço de reposição das forças de trabalho para que elas não se esgotem fisicamente, sendo constituído assim intencionalmente pela burguesia industrialista. Para a autora, lazer diz respeito à dimensão ontológica do ser, onde se produz, reproduz e reinterpreta a cultura (formas de existir e resistir) por meio de uma busca daquilo que ela nomeia “fortes emoções que sempre estiveram presentes na vida humana”. Dessa forma lazer e trabalho não formam um par dicôtomico hierarquizado. Para entender como lazer e trabalho não são necessariamente opostos, basta pensar que quando brancos de classe média viajam para o exterior, o discurso público sobre a categoria não conflita esse lazer com um suposto “dever” de produzir, como acontece na ocorrência de um baile. “É por isso que essas pessoas [negras periféricas] estão aí [nas favelas]! Não trabalham, só querem curtir” ao que as favelas respondem “DEIXA OS GAROTO BRINCA”. Lazer, segundo Iara Félix Viana, é uma dimensão da vida social que, tensionada como é pelo trabalho em um sentido cultural disciplinar, deve ser assegurada enquanto direito para a população negra e periférica.
Uma colaboração a esse pensamento vem do livro Sociedade do Cansaço. O filósofo sul-coreano Byung-chul Han, ao se debruçar sobre o tema da exaustão produzida pelo capitalismo tardio aponta que, para além de uma sociedade que disciplina para a produção por meio de micropenalidades individuais institucionalizadas na escola, na prisão e no exército (como Foucault descreve ao falar do século XX), vivemos em uma sociedade que autonomiza esse processo numa cultura de pressão por desempenho; cultura essa alicerçada em penalizações internas e autoinflingidas que, por vezes, desembocam em doenças como depressão, transtorno de ansiedade, etc. A exploração do trabalho se confunde com autorrealização e autonomização do processo de exploração do trabalho se torna lazer. O tédio, nessa linha de pensamento qualquer desvio da “produtividade”, se configura como um inimigo do desempenho, inibidor da hiperatenção necessária em um mundo virtualizado de estímulos e atividades que tendem a capitalização de tudo.
Nessa lógica, a produção do Heavy Baile é foco de resistência antirracista à sociedade do desempenho. A dupla que mistura EDM e o típico funk carioca já havia borrado as linhas entre alta cultura e cultura popular em 2018 com o álbum Carne de Pescoço que conta a participação do Bonde das Maravilhas, MC Carol, Tati Quebra Barraco, entre outras figuras emblemáticas. Ainda que as letras estejam repletas de substância obviamente política, MC Tchelinho e o produtor Leo Justi apostam em outra manifestação artística para entregar um conteúdo extremamente carregado: a dança. Nada exemplifica melhor isso do que o clipe do single Ciranda de 2019.
O clipe começa com uma cena típica de trabalho. Um garoto negro, empregado em um bar “copo sujo”, busca um ovo para preparar em uma cozinha pequena. Logo antes de começar o preparo, ele liga uma caixa de som e coloca Ciranda para tocar. Os movimentos disciplinados do trabalho começam a ser tomados pelo ritmo da música. Os pés não podem mais ficar parados. Ao entregar os pratos, sabemos que o jovem não trabalha mais, ele dança. O corpo já não serve à mecanicidade do trabalho alienado, ele se debate, ele resiste, ele cria e destrói. O passinho se torna a única forma possível de interação do sujeito com os espaços onde ele habita. A corporeidade negra não consegue ser contida e controlada em um só lugar: ela transita entre os ambientes. O jovem nunca mais é visto.
Byung-chul Han diz em seu livro: “Quem se entedia no andar e não tolera estar entediado, ficará andando a esmo inquieto, irá se debater ou se afundará nesta ou naquela atividade. Mas quem é tolerante com o tédio, depois de um tempo irá reconhecer que possivelmente é o próprio andar que o entedia. Assim, ele será impulsionado a procurar um movimento totalmente novo. O correr ou o cavalgar não é um modo de andar novo. É um andar acelerado. A dança, por exemplo, ou balançar-se, representa um movimento totalmente distinto. Só o homem pode dançar. Possivelmente no andar é tomado por um profundo tédio, de tal modo que por essa crise o tédio transponha o passo do correr para o passo da dança. Comparada com o andar linear, reto, a dança, com seus movimentos revoluteantes, é um luxo que foge totalmente do princípio do desempenho.”
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